A vida é cheia de som e fúria

“As pessoas mais afetivamente infelizes que eu conheço
são as que mais gostam de música pop.”
(Rob Fleming)

Tem gente que, aos domingos antes do almoço, zapeia pela televisão. Outras pessoas lêem o jornal. Eu, como não tenho tv a cabo e detesto jornal impresso (por razões pessoais e frescas), surfo pela internet por uma hora, mais ou menos, entre acordar (lá pelo meio-dia) e sair para o almoço. Às vezes leio blogs, às vezes fico à toa, às vezes procuro o que fazer à noite.

E, procurando o que fazer, descobri ontem uma peça fantástica, em cartaz no CCBB de Brasília. A vida é cheia de som e fúria é baseada no livro Alta Fidelidade, de Nick Hornby, um dos meus favoritos. O livro já rendeu até filme, mas a montagem teatral é anterior à cinematográfica e, em alguns aspectos, ainda melhor.

O filme, de 2000, conta com John Cusack no papel de Rob Gordon, um sujeito que acaba de ser chutado pela namorada e, como uma forma de aliviar sua dor, resolve fazer uma lista dos cinco maiores foras. Gordon tem 35 anos, é dono de uma loja de discos, tem amigos esquisitos, não sabe o que quer da vida e é fissurado em música pop. Tem mania de fazer listas no estilo “5 mais” (Top 5) sobre todo e qualquer assunto.

A versão do cinema consegue ser bem fiel ao livro que é, realmente, fantástico. Sem dúvida, o filme está no meu “Top 5” de filmes favoritos – e sim, eu também tenho a mania dos Top 5. Não é à toa que tenho uma categoria com esse nome aqui no blog que, aliás, chamava-se “Alta Fidelidade”. Como quase ninguém entendia a referência, mudei o nome da categoria.

John Cusack é fantástico e dá vida a Rob Gordon – que, no livro, tem o sobrenome Fleming – brilhantemente. O filme só peca em dois pontos: passa-se nos Estados Unidos – a história original situa-se em Londres – e, talvez justamente por isso, não é fiel às referências musicais presentes na história de Nick Hornby, quase todas inglesas. O diretor Stephen Frears preferiu desenvolver uma trilha sonora nova, ao invés de aproveitar a fantástica trilha sugerida pelo livro.

A peça corrige essas diferenças: Rob Fleming (o nome do protagonista é respeitado) é londrino e a trilha sonora é toda tirada do livro – e melhor que a do filme, na modesta opinião de quem conhece muito pouco de pop internacional. Comparações entre John Cusack e Guilherme Weber são inevitáveis, mas duram apenas os primeiros cinco minutos. Weber é excelente ator, com um carisma incrível e interpreta fantasticamente Fleming. O livro é em primeira pessoa e assim também é a peça. Weber passa quase três horas em cena, sem deixar cair o ritmo. O elenco todo, aliás, está impecável, em atuações ágeis e cheias de personalidade.

O título da peça é uma alusão (também presente no livro de Hornby) a Macbeth, de William Shakespeare:

A vida é só uma sombra; um mau ator
que grita e se debate pelo palco,
depois é esquecido; é uma história
que conta o idiota, toda som e fúria
sem querer dizer nada.

A cenografia é inovadora, fazendo uso de um telão à frente dos atores, em que são projetados trechos de clipes e de algumas letras mencionadas, além, é claro, das listas de Fleming. O cenário por trás dos personagens representa vários dos ambientes da história e a criatividade dos atores ilustra outras tantas situações.

A vida é cheia de som e fúria é uma adaptação fidelíssima do romance que retrata toda uma geração, perdida em meio da milhares de canções pop, sem saber a que veio, solitária em meio às multidões das metrópoles e sempre em busca de amores e amigos.

Uma montagem que está, definitivamente, entre as minhas cinco favoritas de todos os tempos.

A vida é cheia de som e fúria

  • CCBB Brasília
  • De 13 a 23 de outubro
  • De quarta-feira a domingo, às 20h
  • Ingressos: R$ 15 (inteira) e R$ 7,50 (meia)
  • SCES Trecho 2 Conjunto 22 – Brasília-DF
  • Informações: (61) 3310- 7087
  • Montagem da Sutil Companhia de Teatro.

Para mais informações sobre a peça e a relação dos diversos prêmios que recebeu, visite o link da Companhia.

Redescobrindo

Meus quatro ou cinco fiéis leitores já devem estar cansados de saber o quanto sou apaixonada por Legião Urbana. Se eu fizesse uma trilha sonora para minha vida ou para meus estados de espírito, a imensa maioria das canções seriam da banda, e outras tantas viriam da (curta) carreira solo do Renato Russo.

O álbum V sempre foi meu preferido, por conter várias das músicas com que mais me identifico: no V estão O Teatro dos Vampiros e Sereníssima que, para bem ou para mal, me descrevem tão bem. Metal contra as nuvens, com todas as suas oscilações harmônicas e poéticas, e A Montanha Mágica, depressiva do primeiro ao último acorde, também me trazem muitas lembranças – mais do que eu gostaria. Para completar, L âge d or, cínica e pragmática, faz um contraponto interessante às românticas Vento no litoral e O mundo anda tão complicado – a primeira ruma à solidão profunda e a segunda é o retrato de um amor bem-sucedido. A Ordem dos Templários é a música instrumental mais bela dentre as gravadas pela banda (você pode ouvi-la aqui) e Love Song, além de bonita, vale pela curiosidade histórica.

Acontece que outro dia, sei lá por que, decidi ouvir um cedê de que raramente me lembro, O Descobrimento do Brasil. Engraçado… de repente, percebi que Descobrimento tem muito mais a ver com meu atual momento do que V.

Descobrimento é um disco muito mais leve que V – mais pesado que este só mesmo o quase-insuportável-de-tão-depressivo A Tempestade. Leve, mas longe de ser bobo. Descobrimento revela a que veio logo no título. Menos que do Brasil, no entanto, trata-se do descobrimento de si mesmo – do autodescobrimento pelo qual passava Renato Russo na época em que o álbum foi gravado e pelo qual todos nós passamos de vez em quando.

O álbum surge quando Renato já tinha iniciado o tratamento para livrar-se da dependência química e mostrava-se otimista quanto ao seu sucesso. Ainda assim, as letras oscilam entre tristeza e alegria, encontros e despedidas. É como se, para seguir em frente, fosse necessário deixar muitas coisas para trás, e não se pudesse fazer isso sem uma boa dose de nostalgia. Descobrimento é um álbum com notas de esperança, mas permeado por tristeza e saudosismo.

A primeira música, Vinte e nove, resume em poucos versos o que foi dito acima. Fala de perdas, morte e prisão, mas termina com uma mensagem otimista – “e aos vinte e nove, com o retorno de Saturno decidi começar a viver”. Deixa claro que seguir em frente exige uma firme decisão, que pode ser muito dolorosa, mas traz recompensas – “e tive vinte e nove amigos outra vez”.

A fonte descreve o difícil e solitário caminho a ser percorrido para chegar-se a um novo estágio – “o que há de errado comigo?, não consigo encontrar abrigo”. Sai de mim vem na seqüência, ratificando a resolução de seguir em frente. Perfeição é irônica e cínica a começar do título, mas termina com uma tentativa de esperança, apesar de tudo – “vem chegando a primavera, nosso futuro recomeça”.

A música que dá nome ao álbum é plena de um doce romantismo e enaltece as coisas simples da vida não só na sua letra, mas também na harmonia, quase totalmente construída sobre dois acordes.

Os barcos é a música que deixa mais claro o sentimento de abandono que permeia todo o disco – sem qualquer nota de otimismo. Os anjos traz uma enorme carga de descrença na humanidade, mas ao falar “hoje não dá, vou consertar a minha asa quebrada e descansar” abre caminho para a possibilidade de que o dia seguinte seja melhor, de que seja possível brincar de novo amanhã.

Vamos fazer um filme sintetiza todas as idéias do Descobrimento. É minha música favorita do disco e descreve muito bem as razões pelas quais Descobrimento tem marcado meu último mês. É profundamente nostálgica desde o primeiro verso – “achei um 3×4 teu e não quis acreditar que tinha sido há tanto tempo atrás” – sem ser depressiva. Proclama que “viver é foda, morrer é difícil, te ver é uma necessidade”, mas não é entreguista: “sem essa de que ‘estou sozinho’, somos muito mais que isso”. É um pedido aflito de atenção – “eu preciso e quero ter carinho, liberdade e respeito” que consegue, no entanto, escapar ao desespero – “e no meio de uma depressão te ver e ter beleza e fantasia”.

Embora seja mais triste que a música precedente, Um dia perfeito preserva as esperanças e retoma a idéia da música-título – “são as pequenas coisas que valem mais”. Traz uma das mais belas estrofes de Renato:

Não vou deixar me embrutecer,
eu acredito nos meus ideais.
Podem até maltratar meu coração
que meu espírito ninguém vai conseguir quebrar

Giz é a despedida conformada, o adeus de quem sente uma falta tremenda de alguém, mas segue adiante por saber que é isso que tem de ser feito. “Acho que estou gostando de alguém e é de ti que não me esquecerei”. Renato Russo via essa música como sua obra-prima.

Love in the afternoon trata da morte, a ausência definitiva. Não é uma metáfora – a música foi feita para um amigo que morreu subitamente, baleado ao sair de uma boate. Num sentido figurativo, entretanto, pode ser lida como “o que é bom dura pouco”. É triste da primeira à última palavra, mas belíssima.

La nuova giuventú mostra como uma separação pode vir seguida sensação de vazio e desamparo – “com você por perto, eu gostava mais de mim”. É difícil imaginar-se sem alguém que, por tanto tempo, esteve ao lado. Parece que fica faltando um pedaço.

Por fim, Só por hoje fecha o disco tentando manter a esperança apesar das dores – “posso até ficar triste se eu quiser, é só por hoje, ao menos isso eu aprendi”. É uma mensagem otimista de um modo um tanto reverso – “viver é uma dádiva fatal; no fim das contas ninguém sai vivo daqui, mas vamos com calma”. É a luz no fim de um túnel muito, muito comprido, labiríntico e incerto.

“Aceitar o que passou e o que virá” é o ideal de uma vida em paz e, quem sabe, feliz. Chorar pelo que se perdeu é necessário, como catarse, mas viver no passado dói e impede que se veja o que o presente traz de bom – e sempre há coisas boas por vir, ainda que às vezes seja tão difícil acreditar nisso.

Infinitamente nostálgica como sou, tenho a forte tendência a ficar enraizada no passado, olhando para trás, para o que perdi, para outras terras, outros sentimentos e outros amigos que, apesar de todos os meus desejos, simplesmente não voltam mais. Recordações de um tempo que acabou defintiivamente. Às vezes, vejo-me às voltas também com a nostalgia pelo que não vivi, invadida pela saudade do que nunca tive. Descobrimento traduz todos esses sentimentos com uma doçura ímpar, mas também deixa bastante claro que não se pode ficar arraigado ao que passou, sob pena de deixar de viver.

É preciso cultivar a melancolia, de vez em quando. É saudável e faz parte do crescimento pessoal. Esse cultivo, no entanto, deve voltar-se a um processo de (re)descoberta interior, revertendo em aprendizado e forças para tocar a vida, com a certeza de que os bons momentos vividos não serão os únicos de toda uma existência, mas apenas os primeiros.

Que álbum da Legião Urbana é você?

O teste está aqui.

Meu resultado:

Você é o álbum AS QUATRO ESTAÇÕES. Sensível, muito intenso e com uma personalidade forte, você faz o que bem entende, sem se preocupar muito com a opinião dos outros.

Meio verdade. Mas é claro que tudo depende do dia. Esse teste já me deu umas três respostas diferentes. É simplório, mas vale como curiosidade para os fãs da banda.

Coisa Mais Linda

Ficha técnica

Brasil, 2005. Documentário. 126 minutos. Direção: Paulo Thiago. Com Carlos Lyra, Cacá Diegues, Roberto Menescal, Joyce, Paulo Jobim, Arthur da Távola, Nélson Motta.
Um painel histórico, musical e informativo, sobre como ocorreu o movimento musical chamado Bossa Nova, que teve início nos anos 50 e atingiu seu ápice em 1962, com a confirmação de sua internacionalização.

Mais informações: Adoro Cinema.

Comentários

5 estrelas

Paulo Thiago constuiu um belíssimo panorama sobre a Bossa Nova. Carlos Lyra e Roberto Menescal são os condutores da história. Ao longo de duas horas, destacam-se diversos artistas fundamentais para o surgimento e afirmação desse novo estilo musical, legitimamente brasileiro: Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Newton Mendonça, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Joyce, Wanda Sá, João Gilberto e vários outros. Miele, Arthur da Távola e Tárik de Souza são alguns dos nomes que contribuem para a reconstituição histórica.

São duas horas de poesia pura, com direito a momentos emocionantes, como quando Paulo Jobim, tão parecido com o pai, executa algumas canções de Tom, ou quando Menescal conta que a belíssima música Ah! Seu eu Soubesse foi feita em homenagem a Nara, após a sua morte (preste atenção à letra e você também se emocionará). Há, ainda, algumas passagens engraçadas: a origem do banquinho associado à Bossa Nova provoca risos, e mais ainda a explicação sobre o motivo de ser a Bossa Nova um gênero tão intimista.

Faz falta a participação em carne e osso de João Gilberto. Provavelmentea ausência se deve ao seu caráter sabidamente arredio.

Eu, que não vivi a época da Bossa Nova, mas escuto o gênero desde pirralhinha (e sempre foi um dos meus preferidos), amei o documentário. Fez-me sentir nostalgia por uma época que não vivi.

Agora, se você é como uma criatura que estava na fila comprando ingresso e, alertada de que o filme começara há meia hora, respondeu “Ah, é documentário mesmo, meia hora não faz diferença”, então nem perca seu tempo. Se a tal meia hora não fizesse diferença, não estaria lá. Mania que as pessoas têm de levarem mais a sério filmes de ficção do que históricos.

Coisa Mais Linda é um serviço prestado à memória musical de um país caracterizado por esquecer tudo rapidamente. A edição é bem cuidada e inclui diversas imagens da época, além de tomadas lindíssimas da cidade do Rio de Janeiro – a Bossa Nova, falando de céu, sol, mar e amor, só poderia mesmo ter nascido na Cidade Maravilhosa.

Sem querer ser chata, mas já sendo: do que é que os futuros documentaristas vão falar quando olharem para o panorama musical dos anos 90 e 2000? É o Tchan? Tati Quebra-Barraco?