Devo ter errado na contabilidade. No último 2 de setembro, Cacau morreu.
Saí às 12h30, depois de dar todos os remédios e alimentá-la com A/D na seringa. Voltei às 19 horas, e ela estava morta. Morreu sozinha, e nunca vou me perdoar por isso.
Essa gatinha foi adotada pra ser “a gata da Mel”, minha branquela hiperativa que precisava de uma companhia felina. Foi escolhida a dedo, em meio a tantos e tantos gatos que aguardavam adoção. Ela reunia tudo que eu sonhava: era adulta, fêmea, laranja (ou quase), calma e muito, muito carinhosa. Grudenta, companheira de todos os minutos. Eu sempre disse que era a minha “gata dos sonhos”.
Cacau levou um pedaço enorme do meu coração. A partezinha que sobrou dói tanto, tanto… eu nem poderia começar a explicar o que estou sentindo.
Fica bem, gatinha. Vai brincar com a Mel, vai caçar os ratinhos brancos que você tanto ama, vai amassar pão em cobertores e pijamas de moletom com aquela carinha de êxtase que só você sabe fazer.
Há quase três anos, passei por uma feirinha de adoção de gatos. Antes que percebesse, tinha uma gatinha magricela agarrada ao meu ombro, praticamente um papagaio de pirata. Chamei-a primeiro de Lilith, mas logo ela virou Mel, pra ver se o nome adoçava seu comportamento peralta.
É incrível o tanto que um bichinho pode ensinar. Travessa, hiperativa e com um defeito de fábrica que a impedia de entender pra que servia a caixa de areia nos primeiros meses, Mel revolucionou a minha vida. Deixei de limpar a casa metodicamente, porque um gato solta pelos e você tem de se acostumar com isso, ou vai passar todas as horas da sua vida limpando. Desapeguei-me de muita coisa – a começar pela minha cama box, sonho de consumo por anos e que foi destruída em questão de meses. Jogos de cama bonitos? Até podia ter, mas sem neuroses, porque a Mel adorava roer um edredom, uma almofada, uma fronha. Era como se dissesse “ei, mãe, você já tem a coisa mais linda do mundo bem na sua frente, porque fica se preocupando com esses pedaços de pano”?
Aprendi a deixar de lado minhas horas de sono, minha rotina, algumas das minhas viagens, certos gastos. Afinal, passara a ter um serzinho que dependia integralmente de mim.
Em troca, a branquela me deu amor incondicional. Quando não a compreendi nos primeiros meses, ela ficou quietinha num canto até a raiva passar – a minha, não a dela. Quando voltava pra casa, era recebida por ela na porta. À noite, ela subia na minha barriga, amassava pão até cansar e se aninhava para um cochilo. Seu olhar terno era um presente.
Mel me deu, também, outro presente: a Cacau, minha loira, uma fofura de gato com cara de bicho de pelúcia. Se a Mel era minha gata, a Cacau era a gata da Mel. Vê-las brincando juntas e dormindo grudadas (geralmente com a Cacau fazendo a Mel de travesseiro) sempre me encheu de felicidade.
No último 11 de novembro, a branquela decidiu que já tinha me dado tudo o que eu precisava e partiu. Se ela me perguntasse, eu discordaria. Eu tinha tanto ainda a aprender! Tanto a melhorar! Tanto a entender!
A Mel foi embora tão cedo…
A casa, agora, parece enorme. Ela preenchia todos os espaços. Continua preenchendo meu coração. Tenho certeza de que também preenche o da Cacau.
Branquela, magrela, Omo Progress, branquinha, diabo-da-tasmânia em forma de gato, Melzinha, minha mistura de pipoca com carrapato… Espero que você esteja rodeada de bolinhas no Céu dos Gatinhos, Mel. Tomara que você esteja se divertindo muito e que haja muitas almofadas e travesseiros macios e gostosos. Ah, e caixas, muitas caixas para brincar de esconder e destruir.
Obrigada por tudo que você fez por mim. Eu amo você.
Enquanto esperava atendimento numa loja, a televisão mostrava as enchentes no Rio de Janeiro. Não consegui ouvir os detalhes, não sei em que cidade aconteceu. O que vi foi uma mulher no topo de um telhado, desesperada pela água que subia rapidamente, cercava toda a casa e ameaçava arrastá-la. Junto da mulher, um cachorro. Talvez vira-lata. Certamente muito amado. Apesar das chances reais de morrer, a mulher preocupava-se com seu cachorro. Segurava-o. Queria salvá-lo. Não tinha nenhum bem material além da roupa do corpo. Havia apenas o cão.
Ao lado, um prédio bem mais alto. Duas pessoas, em vez de fingirem que nada estava acontecendo, tentaram ajudar a mulher. Arranjaram uma corda e conseguiram jogar-lhe uma ponta. Ela se amarrou e segurou a corda com uma das mãos; com o braço livre, agarrou o cachorro. Sabendo que essa era a única chance de sobrevivência para ambos, atirou-se ao rio que se formara e confiou naqueles dois homens que lhe davam uma esperança.
Segundos depois, a mulher apareceu na superfície da água. Mãos vazias. A correnteza foi mais forte e arrastou o cachorro para a morte certa. A mulher, chorando o tempo todo, foi içada pelos homens. Não sei o que ela dizia. Imagino que estava em choque, assustada, lamentando a perda das suas coisas e do amigo que com tanta determinação ela tentou salvar. Amigo que, talvez, até pudesse ter saído antes do pior momento (não dizem que os animais pressentem mudanças meteorológicas?), mas certamente não abandonaria a dona, por não ser da sua natureza.
Ao meu lado, durante toda a reportagem, um senhor – provavelmente um cidadão respeitável, ciente de suas obrigações, da mais elevada moral e de reputação ilibada – reclamava: “Não é possível! Ela está preocupada com um cachorro! Que ridículo, nessa situação ela preocupada com um bicho!”.
Eu me lembrava das minhas gatas. Se um incêndio tomasse meu apartamento, tenho certeza de que meu principal objetivo seria salvá-las. Se não conseguisse… bem, eu podia imaginar a dor daquela mulher.
O que não podia entender era o descaso daquele sujeito ao meu lado. Será que nunca amou um animal? Será que nunca sequer conviveu com alguém que amasse um bicho? Seria absolutamente incapaz de ao menos ter empatia pela mulher que tentava salvar seu cachorro?
Como alguém pode criticar uma pessoa que tenta salvar seu animal da morte certa? Que tipo de ser humano é esse, afinal?
Na televisão, as últimas cenas dos homens que resgataram a mulher. Não sei o que pensaram sobre o cachorro, mas sei que fizeram o que podiam naquela crise. Não se omitiram.
Diante de um sujeito como o da loja, dá vontade de torcer pela extinção da raça humana. Aí, lembro da mulher lutando pelo cachorro e dos homens tentando salvá-la e até posso tentar acreditar que isso aqui ainda tem conserto.