As Madonas de Leningrado

As Madonas de Leningrado - capa

Marina é uma sobrevivente de guerra. Na juventude, foi guia do Hermitage, o fantástico museu de arte de Leningrado, um dos maiores do mundo. Quando os alemães cercaram a cidade, ficou confinada no museu junto a tantos outros que tentavam sobreviver com a parca ração diária de 200 gramas de pão (para os que trabalhavam; os demais ganhavam a metade), complementada muitas vezes por cola de madeira. Para manter um fiapo de lucidez em meio à fome, às doenças e à morte, Marina constrói um “palácio da memória”: um refúgio interno, uma fuga para tempos melhores, em que se podia passear pelos salões do museu e ver as obras de arte antes de serem evacuadas.

Décadas depois, Marina mora nos Estados Unidos com seu marido – seu amor de adolescência, ele mesmo um sobrevivente da guerra. Tem filhos, netos e uma vida feliz. Algo, porém, está acontecendo dentro dela: as lembranças se perdem, os fatos recentes se embaralham, ela está tão confusa… aos 80 anos, Marina sofre do mal de Alzheimer. O palácio das memórias é, novamente, seu único porto seguro.

As Madonas de Leningrado se passa nesses dois tempos: o presente de Marina, confuso para ela e aflitivo para os que a amam; e o passado da Segunda Guerra Mundial, cheio de dores e morte, mas também de amizade e beleza – um passado lembrado por Marina em termos quase poéticos. A melancolia é a nota principal do livro. Vidas se acabam de tantas formas, às vezes imperceptivelmente… quando o presente é tão difuso que a mente escolhe refugiar-se num passado enegrecido pela guerra, que vida resta?

A autora não era nascida durante a Segunda Guerra, mas fez uma extensa pesquisa. Reconstituiu o terror dos que resistiram ao Cerco de Leningrado (que durou 900 dias), o constante bombardeio, a luta pela sobrevivência; e, principalmente, fez um belo trabalho de descrição do Hermitage, dando ao leitor a sensação de ver o que Marina vê em sua memória. Este é o primeiro romance de Debra Dean, que já publicou mais um livro: Confessions of a Falling Woman, ainda sem tradução em português.

O site do Museu Hermitage proporciona um tour virtual pelas suas magníficas salas, além de trazer informações sobre o cerco e depoimentos dos sobreviventes.

Vale lembrar que Leningrado recobrou seu nome original após a derrocada do regime comunista: São Petersburgo.

Trechos

Ela tende a ficar presa a coisas por mais temo do que qualquer pessoa sensata, que a esta altura já teria desistido e seguido em frente. Um exemplo relevante: o seu casamento. Ou a arte. Qualquer outra pessoa na mesma situação teria desistido do fingimento e escolhido entre aceitar a arte como um passatempo ou começar a pintar coisas para as quais havia um mercado – paisagens e abstratos aguados. Em vez disso, ela insiste em fazer suas figuras humanas e depois ficar indignada porque as pessoas que compram arte nas lojas de presente e de moldura locais não estão pretendendo pendurar quadros de estranhos nus em seus lares. Ela tem 53 anos. Quanto tempo mais vai esperar até que um marchand de Nova York a descubra? Cada um a seu modo, ela e os pais parecem ter simultaneamente chegado aos limites de se esconder como estratégia de vida. (p. 61)

Nenhuma explicação se segue. Quando Helen se vira para o pai, ele diz:
– Algumas coisas ficam melhores se forem esquecidas. (p. 62)

Embora em teoria todos soubessem que os alemães estavam próximos, quando as primeiras bombas soaram na cidade, alguns dias atrás, foi como uma fantasia, surreal e chocante. Aturdidas, as pessoas olhavam umas para as outras, descrentes. Isto não podia estar acontecendo. Não aqui, não em Leningrado. É uma loucura. Eles atiraram mísseis de longo alcance na cidade, matando mulheres, crianças e velhos, aleatoriamente. Para quê? E por que tentar queimar a cidade? De que vale uma vitória se não fica nada como crédito? (p. 66)

É estranho como se pode acostumar com as coisas. Todos os dias agora, pessoas ao redor dela morriam, pessoas que ela conhecia. No início, isto era motivo para lágrimas, mas acontece que o ser humano tem uma capacidade limitada de tristeza. (p. 187)

Ninguém chora mais, ou então chora por pequenas coisas, por momentos sem importância que as pegam desprevenidas. O que mais parte o coração? Não é a morte: a morte é banal. O que parte o coração é a visão de uma única gaivota levantando vôo facilmente de cima de um poste de rua. As asas se desfraldam como echarpes de seda contra o céu cor de malva e Marina ouve o rufar das penas. O que parte o coração é que ainda há beleza no mundo. (p. 192)

Ficha

  • Título original: The Madonnas of Leningrad
  • Autor: Debra Dean
  • Editora: Record
  • Páginas: 269
  • Cotação: 4  estrelas
  • Encontre As Madonas de Leningrado.

2 comentários on “As Madonas de Leningrado

  1. Oi Lu! Sabe, eu adoro ler e tenho fases em relação à literatura: às vezes é um tema que me chama atenção, às vezes é um autor, livros de uma determinada época, um país específico ou até mesmo um gênero literário. Ultimamente descobri os romances e biografias em quadrinhos. Li dois sobre a guerra e seu post me fez lembrar deles. Se ainda não leu livros nesse formato, relamente recomendo Persépolis (auto-biografia de uma iraniana que passou pela revolução cultural) e Maus (o filho de uma das vítimas do holocausto conta a história de seu pai e retrata personagens extremamente humanos). Recomendo os dois. Se encontrar As Madonas de Leningrado numa biblioteca vou locar e depois te conto qual foi a minha impressão. Me tocou muito que a personagem principal também se chame Marina. Abraço!!!

  2. @Marina, também tenho minhas fases, geralmente ligadas a algum autor. Já ouvi falar muito bem de Persépolis! Já Maus, não conhecia, acabo de anotar na minha lista de leituras futuras. Obrigada! 🙂

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