Livro: Nascido do Crime

Livro da vez: “Nascido do Crime”, de Trevor Noah. Livro da Tag Inéditos de janeiro de 2020, que li em março de 2021… pois é, estou atrasada na publicação, mas escrevi a resenha assim que acabei de ler.

É bem comum que eu comece a ler um livro (ou ver um filme) sem ler a sinopse. Com “Nascido do Crime”, foi o que aconteceu, e demorei umas 8 ou 10 páginas para perceber que eu não estava lendo um romance, mas as memórias de Trevor Noah, apresentador e comediante sul-africano com uma proeminente carreira nos EUA.

Trevor nasceu em Joanesburgo nos últimos anos do apartheid, filho de uma sul-africana com um suíço. Sua própria existência era um crime, já que o regime proibia relacionamentos entre brancos e negros, daí o nome do livro. Com um humor afiado, ele narra episódios da infância e adolescência, mostrando como lidou com a fome e a pobreza e dando um panorama sobre a segregação no país, que persistiu mesmo após o fim oficial do apartheid. Algumas passagens provocaram risos, outras me deixaram à beira das lágrimas. Impossível não ver semelhanças com o Brasil.

Estrelinhas no caderno: 5 estrelas

Uma Terra Prometida

Livro da vez: “Uma terra prometida”, de Barack Obama.

Recebi o livro via #netgalley em novembro do ano passado, e o tempo que levei para ler diz mais sobre minha incapacidade de ler dois livros ao mesmo tempo do que sobre o texto. Quando peguei “Uma terra prometida” sem outro livro pedindo minha atenção, a coisa fluiu muito bem.

O livro tem uns trechos meio chatinhos, sim, especialmente quando se embrenha muito na política norte-americana. Outra coisa que é um pouco tediosa (e me pareceu forçada) são as louvações do Obama aos membros da sua equipe.

Por outro lado, achei interessantíssimo quando trata de política internacional (inclusive com rápidas menções ao Brasil). É fascinante ver um pouco da história recente pelos olhos de um dos seus principais protagonistas.

Outra coisa interessante são os momentos de frustração – aparentemente mais frequentes que os de realização – do Obama na tentativa de trazer progresso e de melhorar as condições de vida dos cidadãos sob sua responsabilidade. Os projetos eram frequentemente emperrados por conchavos políticos.

Obama também documenta a radicalização das posturas políticas nos EUA, o crescimento da facção de ultra-direita no Partido Republicano e o surgimento das “fake news” como armas políticas, todos temas que falam de perto à realidade brasileira.

O livro acaba em um ponto decisivo do governo e deixa a vaga promessa de um segundo volume.

Na edição da netgalley, os cadernos de fotografias estão ausentes e há alguns erros (siglas em letras minúsculas, por exemplo) que, presumo, foram corrigidos na versão definitiva.

Estrelinhas no caderno: 4 estrelas

Uma Vida Inventada

Uma Vida Inventada - capa

Ainda me lembro do desconforto de Maitê Proença ao ter sua vida exposta num quadro do Faustão (o tal “Arquivo Confidencial”), sem a sua autorização. Se fosse possível matar alguém com um olhar, o Faustão não estaria vivo pra fazer propaganda da JAC Motors. Foi nesse programa que ficamos sabendo da trágica história pessoal da atriz: aos doze anos, seu pai matou sua mãe, a família ficou em pedaços, cada qual foi para um lado. Maitê se reergueu, viajou, trabalhou em várias áreas e, meio por acaso, acabou se tornando atriz. Sempre manteve sua vida pessoal reservada e teria continuado assim se Faustão não tivesse sido tão indiscreto.

Parece que, depois disso, Maitê desistiu de guardar o segredo. Em Uma Vida Inventada, ela expõe muito de sua vida, passada e atual. Fala de religião, sexo, amores, frustrações, maternidade. Embora a orelha do livro fale numa mistura entre “literatura e vida, verdade e imaginação”, o conteúdo do livro é de memórias, não de ficção.

Uma Vida Inventada é bem escrito, autêntico e emocionante. Quem estava acostumado com a Maitê no Saia Justa encontrará a mesma mulher forte e franca, cheia de opinião e que não faz a menor questão de ir com a maioria ou repetir o senso comum.

Trechos

Não sou uma pessoa infeliz. Em momento algum as tristezas me imobilizaram, e não foi por coragem que isso se deu, mas por temperamento. Há nos meus interiores um entusiasmo indelével que me move. Se estou às portas do abismo, de dentro sobe um fogo que queima os nós da garganta, devolve-me a respiração e a voz e por fim brota em mim uma vigorosa curiosidade por todas as coisas. (p. 32)

Todas as pessoas têm um lar ou um lugar no mundo onde se sentem integradas. Eu não. Já vi amigos descreverem “um bem-estar de útero” ao voltarem para casa de uma viagem longa, “um conforto de berço”. Pois eu não sinto isso nem no apartamento do Rio onde vivo há vinte anos.[…] Gosto do Rio, amo às vezes, mas não sou daqui, e não sou de canto nenhum.
É solitário viver assim.
É também libertador. A gente vaga pelas tribos sem pertencer a elas. (p. 37-38)

Qual o ser vivo, por mais bondoso, que já não pensou na morte de uns vinte? As crianças pensam. Todos nós pensamos. No trânsito, no trabalho, nas discussões com o parceiro. (p. 64)

Na cidade a gente passa a vida encaixotada. Sai de um caixote que anda em cima de rodinhas para dentro de uma caixa que sobe, e nos coloca numa microcaixa com uma campainha, que por sua vez se abre para nos enfiar num caixotão dividido em caixas menores em que passamos grande parte de nosso tempo. Dormimos ali! Para piorar, o caixotão paira nos ares, de forma que se você resolver, num descuido, dar um passo pra fora, cai no vazio e morre. É muito constrangedor. (p. 75)

Renunciando ao agora e desistindo do ócio criamos uma civilização de prazeres adiados em nome de um porvir que não chega nunca. O lado bom dessa busca é o encontro com o novo e a sensação do renascer, pois o preço pago pelas tribos de ócio foi a ausência de desenvolvimento e cultura. Mas o preço pago pela civilização é o enquadramento do espírito, a correria e a falta de paz. (p. 82-83)

Sonho de rico é praia deserta, luz de lampião e rede com vista pro mar, ou seja, a vida do pescador. (p. 83)

É duro ter que viver dia após dia consigo mesmo: o grande cansaço é de si próprio. (p. 83)

Há muita dor nisso de ser jogado numa existência amesquinhada, sem saída e quase animal, mas com a consciência humana para perceber sua condição. É de um cinismo cruel. (p. 170)

Ficha

  • Título: Uma Vida Inventada – memórias trocadas e outras histórias
  • Autor: Maitê Proença
  • Editora: Agir
  • Páginas: 214
  • Cotação: 3 estrelas
  • Encontre Uma Vida Inventada.

Aconteceu na Manchete

Aconteceu na Manchete - capa Uma das mais famosas revistas brasileiras (reconhecida inclusive no exterior) vista por dentro: é isso que Aconteceu na Manchete – histórias que ninguém contou entrega ao leitor, por meio de relatos de funcionários – jornalistas, fotógrafos, editores – que passaram pela redação da revista (e, frequentemente, de outras da Bloch Editores) ao longo de seus 48 anos.

A coleção de crônicas de Aconteceu na Manchete vai além de traçar um retrato de uma das revistas mais longevas do país, fazendo um esboço histórico de décadas do Brasil, ainda que tendencioso em algumas passagens. Isso é perdoável e compreensível- afinal, não se trata de um livro de história, mas de memórias, e cada personagem escreve sobre o que viveu e sentiu, com sua própria carga valorativa.

Se essa diversidade de visões é um dos atrativos do livro, também é um de seus defeitos. A falta de coesão resulta em ler duas ou três vezes a mesma história. Além disso, é estranho – mas não deixa de ser interessante – observar o rancor com que alguns textos parecem ter sido escritos. Esperar-se-ia que os participantes da coletânea em honra à revista fizessem só elogios a ela e ao tempo em que lá estiveram, mas a coisa não é bem assim: alguns colaboradores mal disfarçam suas mágoas. A célebre irreverência de Adolpho Bloch certamente não agradava a todos; e o trabalho extenuante da redação nem sempre era recompensado à altura com o pagamento no fim do mês (às vezes, nem o excelente restaurante e nem a espetacular vista da Baía de Guanabara compensavam).

Nas margens das páginas do livro, há fragmentos de reportagens de percorreram as páginas de Manchete durante os quase 50 anos da revista. Entrevistas com famosos, frases lapidares, fragmentos dos governos que passaram pelo Brasil e fatos que marcaram o mundo enriquecem a leitura.

O livro é bem organizado e visualmente atraente, como eram as edições da revista que homenageia. O fim da leitura deixa um travo de nostalgia. Talvez a falência fosse evitada se Adolpho Bloch não se embrenhasse pela televisão (a Rede Manchete consumiu rios de dinheiro). Certamente, um melhor gerenciamento – menos impulsivo, mais calculado – teria prolongado a existência da revista, que poderia estar nas bancas até hoje. A imprensa nacional ficou mais pobre com a falência da Manchete.

Trechos

Em 1992, a edição comemorativa dos 40 anos da Manchete anota: “Viajar por meio da coleção da revista é, literalmente, folhear o Brasil ou reler frases marcantes como a do atacante Dario, em 1971: ‘Vocês têm a problemática, eu tenho a solucionática’; de Joãozinho Trinta, em 1979: ‘O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual’; de Francelino Pereira, nos anos 1970: ‘Que país é este?’; e do general João Figueiredo a populares que o vaiavam e xingavam, em Florianópolis, em 1979: ‘Minha mãe não está em pauta.'” (p. 398)

Ficha

  • Título: Aconteceu na Manchete – as histórias que ninguém contou
  • Autor: coletânea, com prefácio de João Máximo
  • Editora: Desiderata
  • Páginas: 448
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre Aconteceu na Manchete.