As Esganadas

As Esganadas - capa

Em seu quarto romance, Jô Soares retoma sua fórmula: um crime (ou melhor, uma série de crimes), um pano de fundo histórico (dessa vez, o momento escolhido é o Estado Novo, especificamente 1938), personagens reais desfilando ao lado dos fictícios e muitas risadas.

As Esganadas não segue a ordem natural dos livros de suspense, em que o leitor passa a história tentando descobrir quem é o assassino. Jô revela rapidamente o nome e a motivação do psicopata que odeia gordas, mas isso não tira a graça do livro. Ao contrário, o divertido é observar o delegado Mello Noronha às voltas com o mistério, auxiliado pelo português Tobias Esteves (pesonagem à la Sherlock Holmes), pela jornalista Diana de Souza e pelo fiel escudeiro Valdir Calixto.

As aventuras desse quarteto rendem ótimos momentos. Além do humor de tipo (afinal, há um personagem português!), Jô Soares abusa da ironia e do humor sutil, que numa leitura rápida até passa batido. De quebra, faz uma crítica ao preconceito da sociedade

Alguns dos personagens históricos são Aleister Crowley, Filinto Müller, Fernando Pessoa, Maria Clara Machado e, claro, Getúlio Vargas. É inevitável aprender ou recordar algo de História. Como sempre, possuir um pouco de cultura geral ajuda bastante a curtir os livros do Jô. Em certos momentos, ele até exagera nas explicações históricas, quebrando o ritmo da leitura, mas sempre é possível aproveitar esses trechos para aprender algo.

Não espere, no entanto, um livro denso. As Esganadas é leve (sem trocadilho), agradável (apesar dos crimes meio nojentos) e perfeito para as férias.  É muito mais engraçado que Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (o mais fraco de todos) e mais dinâmico que O homem que matou Getúlio Vargas, sendo meu segundo livro favorito do Jô – só perde para o imbatível O Xangô de Baker Street.

 Trechos

A funerária Estige passara de pai para filho desde a Guerra do Paraguai. Seu bisavô enriquecera devido a um contrato feito com o governo, sem licitação, intermediado pela namorada de um funcionário ligado ao gabinete do Ministério da Guerra. Tal contrato cedia exclusividade para o funeral dos soldados não identificados mortos no conflito. O escândalo da negociata fora abafado quando a imprensa descobriu que havia um número maior de enterros do que de combatentes mortos. (p. 18)

 

– O senhor é evangélico? – pergunta o curioso Calixto.

– Não, sou agnóstico.

– Agnóstico? O que é agnóstico?

– É um ateu cagão – define Mello Noronha, à sua maneira. (p. 47)

 

Existe um preconceito velado contra a obesidade. Na verdade, dificilmente os homens o sentem. Podem ser gordos inteligentes ou ricos ou oferecerem tantos outros atrativos. Quem sofre o problema com maior intensidade são as mulheres. As mulheres gordas. O leitor pode se escandalizar com o uso da palavra gorda. Os eufemismos mais comuns são: cheinha, forte, grande e, o mais ousado, gordinha.

Geralmente, acham que a gorda (odeio a palavra obesa) não tem força de vontade. Nem caráter. Nem vergonha na cara. A gorda é um pária; o excesso de peso, um divisor de águas. O próprio adjetivo é um palavrão. Ninguém se importa com o sofrimento ou com a humilhação da gorda.

Acham que ela é gorda porque quer. Observem o olhar triste das moças gordas varrendo as vitrines da moda. Os figurinos são para as magras. Alguns vendedores ainda informam sem se alterar: “Aqui é só pra pessoas normais, madame”. E a gorda se afasta engolindo o ultraje. Restam-lhe as lojas especializadas ou as costureirinhas de bairro. Para mim, anormal é o tratamento do vendedor.

A obesidade é democrática, não faz diferença de classe. Há gordas ricas e gordas pobres. Todas sentem a mesma reprovação silenciosa da sociedade. Existem gordas belas, mas, se a beleza é notada, há sempre um apêndice ao comentário: “O rosto é lindo. Pena que seja gorda”. (p. 95-96)

 

– Ser gordo ou se achar gordo são duas coisas diferentes – afirma Tobias Esteves. – Minha alcunha em Lisboa, junto aos colegas da delegacia, era Gordo; no entanto, não me acho gordo.

– O senhor não é gordo, é só um pouco baixo pro seu peso – declara o diplomático Calixto. (p. 107)

 

– É verdade, doutor Noronha – anima-se Calixto. – Terceiro lugar, numa Copa do Mundo, lá na Europa. Não é nada, não é nada…

– Não é nada – arremata Tobias Esteves, com sua lógica arrasadora. (p. 126)

 

A obra inicia com um prelúdio de cento e trinta e seis compassos representando o fluxo eterno do rio. Dura cerca de quatro minutos. Em sua autobiografia, Wagner menciona que a ideia surgiu quando estava sonolento num quarto de hotel, na Itália. Não esclarece se o prelúdio despertou-o ou fê-lo dormir de vez. (p. 187-188)

 

– Imenso prazer em revê-la e, se o marido me permite o elogio, linda e elegante como sempre.

– Nem tanto. Preciso perder dois quilos.

Tobias Esteves pontifica sobre o assunto:

– Senhora dona Yolanda, se me permite, sua declaração tem uma característica universal. Toda mulher do mundo acha que precisa perder dois quilos. O que disse já foi repetido em todas as demais línguas faladas no dito mundo civilizado. Sabe como a mulher chega a esta conclusão? Observando-se nas fotos. No espelho, ninguém se vê como realmente é. Diante do espelho, acontece uma correção inconsciente do corpo, e ela apresenta o melhor ângulo de si mesma. Numa fotografia, as pessoas aparecem chapadas no papel. Ninguém faz de si uma imagem real. Nos achamos um pouco melhores do que somos. Por isso é tão comum ouvir-se a frase: “estou horrorosa nesta foto!”. Geralmente, não é verdade. De modo que posso garantir à senhora, dona Yolanda, que a sua beleza é irreprochável.

– Muito obrigada, seu Tobias, mas a verdade é que eu preciso perder dois quilos. (p. 218)

Ficha

  • Título: As Esganadas
  • Organizador: Jô Soares
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 262
  • Cotação: 4 estrelas
  • Encontre As Esganadas.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em dezembro são lançamentos de 2011. Conheça o Desafio Literário.

Contos de Horror do Século XIX

Contos de Horror do Século XIX - capaHá que ser muito hábil para fazer um bom conto. O estilo não permite digressões, não comporta longas cenas descritivas nem deixa espaço para muita elaboração em torno dos personagens; por outro lado, é preciso envolver o leitor em poucas páginas e surpreendê-lo no desfecho.

Essa tarefa fica ainda mais complexa quando se trata de contos de horror. Como tecer o necessário suspense, como criar a tensão que o horror pede sem fugir do formato? A resposta é dada pelas histórias compiladas em Contos de Horror do Século XIX. Nem todos os textos da coletânea são bem-sucedidos, mas a grande maioria cumpre muito bem a missão de envolver, assustar e surpreender o leitor.

Entre as pérolas, há autores absolutamente inusitados. Quem diria que Eça de Queiroz, por exemplo, teria um conto de horror (um dos melhores do livro, embora com desfecho um tanto previsível)? Ou Júlio Verne? Ou o poeta Walt Whitman? Ah, sim, Sir Arthur Conan Doyle também está lá, numa história anterior à criação do seu mais famoso personagem.

Há também os escritores esperados: Edgar Allan Poe (que, aliás, influenciou outros autores presentes no livro) não decepciona com o excelente Os fatos no caso do sr. Valdemar. Bram Stoker está lá com A Selvagem, fugindo da temática que o consagrou (e particularmente sinistro para os donos de gatos). Senti falta de H. P. Lovecraft – será que, tendo nascido em 1890, ele não escreveu nada ambientado no século XIX?

Os temas variam do mais mundano (uma troca de nomes levando a uma condenação errada) ao mais sobrenatural (mortos andando entre os vivos), passando por acidentes, pragas, itens enfeitiçados, loucura, violência e um navio amaldiçoado. O horror, afinal, encontra diversas maneiras de se expressar e de impressionar.

Destaco o sensacional A volta do parafuso, de Henry James – um “conto” de mais de 100 páginas, tão bem conduzido que é como se um filme saltasse das palavras; e o assustador A mão do macaco (W. W. Jacobs), que abre a coletânea.

Se você gosta do gênero, Contos de horror do século XIX é leitura indispensável; se não tem familiaridade com a literatura de horror, o livro é uma ótima forma de iniciar-se no tema, tamanha a variedade (com qualidade) que proporciona.

Ficha

  • Título: Contos de horror do século XIX
  • Organizador: Alberto Manguel
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 547
  • Cotação: 4 estrelas
  • Encontre Contos de horror do século XIX.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em novembro são contos. Conheça o Desafio Literário.

O General Em Seu Labirinto

O general em seu labirinto - capa

Gabriel García Márquez misturou história e ficção para compor as últimas semanas do general Simón Bolívar, herói da independência da América Espanhola. São dias pouco documentados – dizem que Bolívar escreveu cerca de 10.000 cartas ao longo de sua vida, mas no fim dela compôs apenas três ou quatro – e, portanto, García Márquez teve um bom espaço para criar. Por outro lado, o romance traz muitos dados históricos, especialmente porque não é linear: Bolívar, febril e debilitado, frequentemente se perde em pensamentos que remetem aos seus dias gloriosos, às batalhas que venceu e ao seu sonho de reunir todas as ex-colônias espanholas sob uma única bandeira.

Esse é o labirinto (muitas vezes melancólico) do general: suas memórias confundidas ao momento presente e permeadas por alucinações. É por esse labirinto que o leitor é conduzido, perdendo-se com certa frequência nas reminiscências e sem ter certeza do que é história e do que é ficção. Bolívar é apresentado como um sujeito conturbado, amado por alguns e odiado por outros, contraditório nos seus desejos de poder, impulsivo e orgulhoso. Às vezes cruel, outras compassivo; às vezes, monarquista, outras republicano; um grande líder,embora na hora da morte contasse apenas com um punhado de servidores leais

Embora seja interessante, dos quatro livros que já li de Gabriel García Márquez, este é o único que não recomendaria. Não é um livro ruim – como poderia ser? -, mas achei-o tedioso em diversas passagens. Certamente será mais cativante para alguém com mais interesse na história da formação dos países sul-americanos de língua hispânica.

Trechos

Na confusão dos cumprimentos alguém tornou a incorrer na sandice eterna: “Aqui faz tanto calor que as galinhas põem ovos fritos”. (p. 75)

– A coisa é que deixamos de ser espanhóis e depois andamos daqui para lá, em países que mudam tanto de nome e de governo de um dia para o outro que já nem sabemos onde carajos estamos. [dito pelo general] (p. 187)

Era [o general] tão rigoroso no manejo dos dinheiros públicos que não conseguia voltar a esse assunto sem perder as estribeiras. Quando presidente, tinha decretado a pena de morte para todo funcionário público que malversasse ou roubasse mais de dez pesos. (p. 192)

Carajos! – suspirou [o general]. – Como vou sair deste labirinto? (p. 266)

Ficha

  • Título original: El General en su Laberinto
  • Autor: Gabriel García Márquez
  • Editora: Record
  • Páginas: 283
  • Cotação: 3 estrelas
  • Encontre O General em seu Labirinto.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em outubro são os autores que ganharam o Nobel de Literatura. Conheça o Desafio Literário.

Muita Vela Pra Pouco Defunto

Muita Vela Pra Pouco Defunto - capa Não é fácil encontrar autores regionais brasilienses. Primeiro, porque a cidade ainda é nova: são apenas 51 anos de vida, pouco tempo para formar uma cultura com raízes locais, que trate do nosso universo. Segundo, pela falta de divulgação – porque é claro que já deve existir um ou outro escritor brasiliense, mas ou eles se escondem ou, mais provavelmente, a mídia não tem interesse em divulgar novos talentos.

Procurando bastante, encontrei o livro de contos Muita Vela Pra Pouco Defunto, de João Carlos Ronca Júnior. É o primeiro livro do autor e sinto-me pouco confortável para criticar. Afinal, provavelmente hoje ele já tem uma escrita diferente da que tinha em 2007, quando lançou os contos e certamente recebeu comentários

Fato é que os contos não fazem meu estilo. A maioria deles é cotidiana demais na história, enquanto a linguagem titubeia entre a do dia-a-dia e a excessivamente explicadinha, forçada. Faltam um estilo mais desenvolvido e um argumento mais poderoso. É verdade que a segunda metade do livro é melhor que a primeira e traz histórias mais interessantes, como A Essência da Maldade, que principia com um cruel conto judaico. A tragédia de Portas Quebradas também é tocante.

Outro aspecto que me desagradou foi o uso dos contos para transmitir ensinamentos morais. Essa era a proposta do autor desde o início, como deixa claro o subtítulo do livro: Histórias do cotidiano como instrumento para a reflexão. Provavelmente, se eu tivesse atentado para isso, continuaria na minha busca por outra obra regional. O único tipo de literatura moralizante que me atrai são as fábulas e os antigos contos-de-fadas.

Se você não tiver problemas com esses pontos, provavelmente gostará mais do livro do que eu.

Ficha

Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em setembro são os clássicos da literatura brasileira. Conheça o Desafio Literário.