Muita Vela Pra Pouco Defunto

Muita Vela Pra Pouco Defunto - capa Não é fácil encontrar autores regionais brasilienses. Primeiro, porque a cidade ainda é nova: são apenas 51 anos de vida, pouco tempo para formar uma cultura com raízes locais, que trate do nosso universo. Segundo, pela falta de divulgação – porque é claro que já deve existir um ou outro escritor brasiliense, mas ou eles se escondem ou, mais provavelmente, a mídia não tem interesse em divulgar novos talentos.

Procurando bastante, encontrei o livro de contos Muita Vela Pra Pouco Defunto, de João Carlos Ronca Júnior. É o primeiro livro do autor e sinto-me pouco confortável para criticar. Afinal, provavelmente hoje ele já tem uma escrita diferente da que tinha em 2007, quando lançou os contos e certamente recebeu comentários

Fato é que os contos não fazem meu estilo. A maioria deles é cotidiana demais na história, enquanto a linguagem titubeia entre a do dia-a-dia e a excessivamente explicadinha, forçada. Faltam um estilo mais desenvolvido e um argumento mais poderoso. É verdade que a segunda metade do livro é melhor que a primeira e traz histórias mais interessantes, como A Essência da Maldade, que principia com um cruel conto judaico. A tragédia de Portas Quebradas também é tocante.

Outro aspecto que me desagradou foi o uso dos contos para transmitir ensinamentos morais. Essa era a proposta do autor desde o início, como deixa claro o subtítulo do livro: Histórias do cotidiano como instrumento para a reflexão. Provavelmente, se eu tivesse atentado para isso, continuaria na minha busca por outra obra regional. O único tipo de literatura moralizante que me atrai são as fábulas e os antigos contos-de-fadas.

Se você não tiver problemas com esses pontos, provavelmente gostará mais do livro do que eu.

Ficha

Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em setembro são os clássicos da literatura brasileira. Conheça o Desafio Literário.

Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão

Paixão Pagu - capaPatrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, é mais que uma escritora modernista. Em Paixão Pagu, ela narra seus mais íntimos pensamentos, seus conflitos e tormentos, desnudando uma mulher à frente da sua época, feminista (embora nem se usasse ainda o termo), determinada e, ao mesmo tempo, insegura e perdida. Em busca de ideais superiores, deixa-se atrair pelas promessas do então nascente movimento comunista. Pelo partido, Pagu abandona a família, arrisca a vida, se prostitui, dá-se de corpo e alma à causa operária. No partido tem suas primeiras decepções em relação ao comunismo, que aumentam ainda mais quando tem a chance de ver a real situação na China e na União Soviética. Percebe que tudo não passava de um sonho vazio, de promessas vãs. Percebe que o comunismo apenas perpetua a exploração dos mais fracos pelos mais poderosos – que, aqui, não são os capitalistas, mas os líderes do partido. Troca-se uma injustiça social por outra ainda mais severa.

Isso tudo está em Paixão Pagu, livro que, originalmente, era uma longa carta escrita por Pagu para seu marido, enquanto estava presa (pela segunda vez) por atividades comunistas durante o governo de Getúlio Vargas. Na carta, Pagu fala da sua iniciação sexual, aos 12 anos, da primeira gravidez, aos 14, da primeira decepção amorosa, do casamento sem amor com Oswald de Andrade, das traições do marido. Menciona sua admiração inicial pelos intelectuais da época (no Brasil e na Argentina), seguida de um profundo desprezo. Narra, principalmente, sua paixão de primeira hora pela causa comunista, sua entrega incondicional, os constantes e perversos sacrifícios a que foi submetida pelo partido, até enfim perceber as mentiras, a falácia, o vazio dos discursos pelos quais teria dado a vida se lhe fosse pedido.

A carta acaba assim, envolta em decepção na Rússia socialista. A vida de Pagu continua ao lado de Geraldo Ferraz (esse sim, um casamento com amor e confiança). Nos anos seguintes à sua libertação, Pagu escreveu crônicas e romances, trabalhou em jornais e continuou na política, sendo candidata a deputada estadual de São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro em 1950. Parece, contudo, que jamais encontrou paz. Tentou se matar em 1949, e novamente em 1962, já muito doente (morreria no mesmo ano, de câncer).

O livro é o relato apaixonado de uma mulher que, se tivesse nascido uns 30 anos mais tarde, seria libertária como Leila Diniz. Na época em que viveu, foi sobretudo infeliz.

Trechos

Eu procurava. Sem saber o quê. Sem nada esperar. Alguma coisa que me absorvesse com certeza. Um nervosismo intenso me levava a expansões físicas. Fazia esporte. Nadava quase todo dia para exaurir-me. Tinha momentos de grande enternecimento junto de meu filho. Mas eu repelia esses momentos. Eu sofria muito, desconhecendo a causa desse sofrimento. Uma noite, andei pelas ruas vazias, chorando; depois, muitas outras noites. (p. 74)

Contei-lhe minhas apreensões sobre Rudá [primeiro filho de Pagu], que soubera estar novamente com pneumonia. Estava angustiada, mas sabia que não deixaria Santos naquele momento. R. sorria. O sorriso clássico dos que chamamos proletários intelectualizados, que só mais tarde percebi não conter apenas desprezo pela pequena burguesia. R. tinha as feições que o partido dava a seus militantes depois de algum tempo. Adquire-se o hábito da atitude comunista, como se familiariza com a nomenclatura convencional. Em grande parte devido à hierarquia moral que os próprios militantes constroem, eu também respeitei como novata esse estigma de superioridade. Cada pensamento meu que não fosse forte e calmo me enchia de vergonha.
Foi com um tom de infinito desprezo que R. atacou o que designava como aviltante sentimentalismo. E com toda a vontade de atingir arranjou essas palavras:
– E se seu filho morresse hoje?
Senti apenas que estava muito quente e pude responder:
– Os filhos dos trabalhadores estão morrendo de fome todos os dias. O importante é a nossa tarefa de agora.
Por que falei assim? Senti como falseados os meus sentimentos. Estava também principiando a formar atitudes. Odiei-me pela cretinice e desonestidade comigo mesma. (p. 83)

Qualquer descrição é inútil. Quem se tinha por revolucionária só poderia ver um terço da população chinesa vivendo nos juncos dos rios. Eu tenho pudor da realidade da China. É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem ou ânimo de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fábula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira. (p. 144)

Boris tinha ido comprar bombons, que eu queria para meu filho, e eu o esperava num canto da Praça Vermelha do Kremlin. Examinava as construções essencialmente russas, admirando o serviço de trânsito, dirigido por mulheres uniformizadas magnificamente. Estava interessada pelos dólmãs brancos e pelo garbo espontâneo de seus movimentos, quando senti que me puxavam o casaco. era uma garotinha de uns oito ou nove anos em andrajos. Percebi que pedia esmola. Que diferença das saudáveis crianças que eu vira na Sibéria e nas ruas de Moscou mesmo. Os pés descalços pareciam mergulhar em qualquer coisa inexistente, porque lhe faltavam pedaços de dedos. Tremia de frio, mas não chorava com seus olhos enormes. Todas as conquistas da revolução paravam naquela mãozinha trêmula estendida para mim, para a comunista que queria, antes de tudo, a salvação de todas as crianças da Terra. E eu comprava bombons no mundo da revolução vitoriosa. Os bombons que tinham inscrições de liberdade e abastança das crianças da União Soviética. Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças? (p. 150)

Ficha

  • Título original: Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão
  • Organizador: Geraldo Galvão Ferraz
  • Editora: Agir
  • Páginas: 159
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre Paixão Pagu.

O Retorno do Capitão Kirk

O Retorno do Capitão Kirk - capaFrancamente, não sou a pessoa mais indicada pra resenhar esse livro. Acho o William Shatner fantástico, pra mim tudo que ele faz é incrível, assistia Boston Legal por causa dele e sou órfã do $h*! My dad says. Por outro lado, tenho que admitir que, embora a Série Clássica seja melhor que a Nova Geração, o Picard é melhor que o Kirk. Mas veja só a época: Kirk era um desbravador, um aventureiro, praticamente um pioneiro. Quando Picard comandou, os tempos eram outros – mais burocráticos, mais tranquilos, com menos planetas inexplorados repletos de mocinhas carentes e parcamente vestidas…

Mas divago.

O que gosto no Shatner é justamente o que apontam como seu defeito: seu jeito canastrão. E O Retorno do Capitão Kirk é canastrão desde o título original: Star Trek – The Return. Porque, afinal de contas, o que seria de todo o universo criado por Gene Roddenberry sem seu personagem principal, não é mesmo? Ele retorna, a série inteira retorna junto.

Não que a história não seja boa: ela é muito bem escrita e foi feita pra agradar em cheio aos trekkers. Mas veja, o livro só existe porque Bill Shatner ficou revoltado demais com a morte do seu personagem no filme Generations (e quem não ficou?) e é egocêntrico o suficiente pra tentar mudar o curso das coisas, nem que seja só no mundo dos livros de Star Trek (que não são considerados parte da mitologia da série). Não é um golpe digno do Capitão Kirk? Bill trapaceou dentro do jogo dos roteiristas, diretores e da Paramount. Kobayashi Maru!

Claro que ele contou com uma ajudinha… embora a capa do livro diga “Escrito por William Shatner”, na folha de rosto a gente descobre um “com Judith e Garfield Reeves-Stevens”. Esse casal é famoso pelos seus ótimos livros baseados em Jornada nas Estrelas e por seu intenso envolvimento com a franquia. Fiquei pensando qual foi a real contribuição do Shatner para o livro (além de dizer “Olha, escrevam sobre a volta do Capitão Kirk!”).

Mas tergiverso..

Kirk não morreu! - cena de Generations
Kirk não morreu!

Voltemos ao livro. Estão lá todos os elementos para uma boa história de Star Trek: membros da Série Clássica, a honrada tripulação da Nova Geração, tem até um passeio pela Estação Espacial 9… e os vilões, claro, os vilões! Romulanos e borgs, juntos e ao vivo! Basicamente, os dois melhores grupos de vilões de toda o universo trekker. Kirk, dado por morto e enterrado, é ressuscitado por eles para servir a fins escusos que podem ser resumidos no objetivo geral dos vilões de  Jornada: conquistar 24 territ- ops, quero dizer, destruir a Frota Estelar e a Federação.

No processo, o leitor se emociona (como não?), diverte-se e experimenta bons momentos de suspense. Em alguns pontos aparece um certo tédio e alguma irritação pelos constantes “cortes de cena” (algumas delas são bem desinteressantes). No geral, porém, a história não decepciona. Digo mais: um trekker vai não apenas curtir o livro, mas vai se deliciar com o desfecho pra lá de surpreendente! E aí fico pensando: como raios isso não pode ser canônico??? É bom demais pra ficar restrito a um livro.

Desculpe, eu sei que este artigo só faz sentido pra quem é muito fã de Jornada nas Estrelas, mas assim também é o livro. O Retorno do Capitão Kirk é praticamente um trabalho de arqueologia pelo longo universo de Star Trek, que hoje, 8 de setembro de 2011, completa gloriosos 45 anos, audaciosamente indo aonde nenhuma série jamais esteve. E este texto está mais pra cartão de aniversário que pra resenha literária.

Parabéns a todos os envolvidos! 🙂

Ficha

  • Título original: Star Trek – The Return
  • Autores: William Shatner, com Judith e Garfield Reeves-Stevens
  • Editora: Meia Sete
  • Páginas: 415
  • Cotação: 5 estrelas
  • Encontre O Retorno do Capitão Kirk.

Imagens: capa do livro e cena de Star Trek: Generations (divulgação).

Esaú e Jacó

Esaú e Jacó - capa Os irmãos bíblicos rivais emprestam o nome ao romance centrado em Pedro e Paulo, gêmeos parecidos fisicamente e praticamente opostos no caráter. Sua vida é feita de disputas desde o ventre de sua mãe, passando por rusgas no dia-a-dia, brigas sobre política e ciúmes no amor.

Esaú e Jacó se passa entre os últimos anos da monarquia e os primeiros da república, mas sem qualquer pretensão de ser um livro de História. Machado retrata o período do ponto de vista da burguesia, dos comerciantes, do sobe-e-desce dos interessados na carreira política (e conclui ironicamente que, ao fim e ao cabo, tanto um quanto o outro regime dão na mesma). É um painel muito interessante do cotidiano daqueles anos.

Boa parte da trama se desenrola entre as paixões políticas de Paulo e Pedro e entre sua paixão pela mesma mulher, Flora. O narrador em terceira pessoa conversa com o leitor (ou melhor, com a leitora, já que na maioria das vezes prefere o gênero feminino) e intervém bastante no romance, bem mais que em Memórias Póstumas de Brás Cubas (meu livro preferido de Machado e um dos meus favoritos de todos os tempos). Incomoda um pouco no início, mas logo acostuma-se e chega a soar engraçado.

Outra coisa um tanto incômoda é a lentidão da narrativa. Esaú e Jacó tem idas e vindas, pormenores e detalhes que chegam a cansar em alguns momento, fazendo pensar “Está bem, já entendi isso, vamos seguir adiante?”. É certo que Memórias Póstumas também tem essas características, mas lá elas me pareceram mais convenientes que aqui.

Não falta a fina ironia machadiana, provocando umas boas risadas de vez em quando.

Curiosamente, meu personagem favorito foi um dos secundários: o Conselheiro Aires, um ex-diplomata que, apesar de parecer cordato a tudo, anota em seu diário os próprios julgamentos sobre o mundo e as pessoas que o cercam. Aires soou-me como o alter ego de Machado de Assis. Memorial de Aires, último livro do romancista (Esaú e Jacó foi o penúltimo) já está na minha lista de leituras futuras.

Se tenho a audácia de dar quatro estrelas para o livro é apenas porque, dentro do mesmo estilo e sendo do mesmo autor,  Memórias Póstumas de Brás Cubas continua meu favorito.

Trechos

– Não é a ocasião que faz o ladrão – dizia ele [o Conselheiro Aires] a alguém -, o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito. (p. 145)

Há muito remédio contra a insônia. O mais vulgar é contar de um até mil, dois mil, três mil ou mais, se a insônia não ceder logo. É remédio que ainda não fez dormir ninguém, ao que parece, mas não importa. (p. 154)

Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lágrimas de sangue, sem lhe merecer a menor simpatia. Que o amor, conforme as ninfas antigas e modernas, não tem piedade. Quando há piedade para outro, dizem elas, é que o amor ainda não nasceu de verdade,ou já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa primeira camisa do afeto. (p. 155)

Ficha

  • Título: Esaú e Jacó
  • Autor: Machado de Assis
  • Editora: Martin Claret
  • Páginas: 222
  • Cotação: 4 estrelas
  • Encontre Esaú e Jacó.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em agosto são os clássicos da literatura brasileira. Conheça o Desafio Literário.