Seda

Seda - capa

Eis um livro perfeitamente definido pelo título. Seda é como o tecido: fluido, suave, leve, quase etéreo.

Hervé Joncour é um francês comum que compra e vende ovos de bichos-da-seda, em meados do século XIX. Quando o comércio com os países próximos entra em crise, a alternativa é trazê-los diretamente do Japão. Tratava-se de empreendimento de risco: o homem precisava deixar seu lar na Europa, submeter-se a uma extenuante viagem e contar com um tanto de sorte para não se deixar sucumbir (ou ao frágil contrabando) por guerras e outros percalços. Trabalho de meses e meses.

O homem faz a viagem. Justamente ele, pacato, tedioso, placidamente casado, encara a missão espinhosa de trazer à sua cidade os bichos-da-seda. Nesta aventura, a vida começa a descortinar-se diante de quem, até então, fora mero espectador; e continua desabrochando a cada nova viagem. O Japão é um mundo desconhecido, mágico. Do encontro entre oriente e ocidente emerge uma forte paixão.

O texto é lírico como foram as viagens para o protagonista. É necessário lê-lo com esse mesmo lirismo, apreciando a prosa como se fosse poesia, sem a pretensão de desvendar cada metáfora, cada descrição. Como num sonho, a história vai-se revelando mais ao coração que ao intelecto.

Prefiro, do mesmo autor, Sem Sangue, preciso como Seda, porém bruto; mas Seda é, sem dúvida, um livro fascinante. O romance deu origem ao filme Silk em 2007, traduzido no Brasil como Paixão Proibida, com Keira Knightley no elenco.

Trechos

Era, além disso, um daqueles homens que amam observar a própria vida, julgando imprópria qualquer ambição de vivê-la. Deve-se registrar que esses homens observam seu próprio destino da maneira como os outros, mais numerosos, costumam observar um dia de chuva. (p. 11-12)

– A primeira vez que vi Hara Kei, ele vestia uma túnica escura, estava sentado com as pernas cruzadas, imóvel, num canto do cômodo. Estendida ao lado dele, com a cabeça apoiada em seu colo, havia uma mulher. Seus olhos não tinham o corte oriental, e o rosto era o de uma menina.
Baldabiou continuou a escutar, em silêncio, até o fim, até o trem de Eberfeld.
Não pensava em nada.
Escutava.
Fez-lhe mal ouvir, no fim, Hervé Joncour dizer devagar
– Nunca mais ouvi nem ao menos sua voz.
E pouco depois:
– É uma dor estranha.
Devagar.
– Morrer de saudade de algo que nunca voltará. (p. 99-100)

Ficha

  • Título original: Seta
  • Autor: Alessandro Baricco
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 121
  • Cotação: 4 estrelas
  • Encontre Seda ou o filme Paixão Proibida.

As Madonas de Leningrado

As Madonas de Leningrado - capa

Marina é uma sobrevivente de guerra. Na juventude, foi guia do Hermitage, o fantástico museu de arte de Leningrado, um dos maiores do mundo. Quando os alemães cercaram a cidade, ficou confinada no museu junto a tantos outros que tentavam sobreviver com a parca ração diária de 200 gramas de pão (para os que trabalhavam; os demais ganhavam a metade), complementada muitas vezes por cola de madeira. Para manter um fiapo de lucidez em meio à fome, às doenças e à morte, Marina constrói um “palácio da memória”: um refúgio interno, uma fuga para tempos melhores, em que se podia passear pelos salões do museu e ver as obras de arte antes de serem evacuadas.

Décadas depois, Marina mora nos Estados Unidos com seu marido – seu amor de adolescência, ele mesmo um sobrevivente da guerra. Tem filhos, netos e uma vida feliz. Algo, porém, está acontecendo dentro dela: as lembranças se perdem, os fatos recentes se embaralham, ela está tão confusa… aos 80 anos, Marina sofre do mal de Alzheimer. O palácio das memórias é, novamente, seu único porto seguro.

As Madonas de Leningrado se passa nesses dois tempos: o presente de Marina, confuso para ela e aflitivo para os que a amam; e o passado da Segunda Guerra Mundial, cheio de dores e morte, mas também de amizade e beleza – um passado lembrado por Marina em termos quase poéticos. A melancolia é a nota principal do livro. Vidas se acabam de tantas formas, às vezes imperceptivelmente… quando o presente é tão difuso que a mente escolhe refugiar-se num passado enegrecido pela guerra, que vida resta?

A autora não era nascida durante a Segunda Guerra, mas fez uma extensa pesquisa. Reconstituiu o terror dos que resistiram ao Cerco de Leningrado (que durou 900 dias), o constante bombardeio, a luta pela sobrevivência; e, principalmente, fez um belo trabalho de descrição do Hermitage, dando ao leitor a sensação de ver o que Marina vê em sua memória. Este é o primeiro romance de Debra Dean, que já publicou mais um livro: Confessions of a Falling Woman, ainda sem tradução em português.

O site do Museu Hermitage proporciona um tour virtual pelas suas magníficas salas, além de trazer informações sobre o cerco e depoimentos dos sobreviventes.

Vale lembrar que Leningrado recobrou seu nome original após a derrocada do regime comunista: São Petersburgo.

Trechos

Ela tende a ficar presa a coisas por mais temo do que qualquer pessoa sensata, que a esta altura já teria desistido e seguido em frente. Um exemplo relevante: o seu casamento. Ou a arte. Qualquer outra pessoa na mesma situação teria desistido do fingimento e escolhido entre aceitar a arte como um passatempo ou começar a pintar coisas para as quais havia um mercado – paisagens e abstratos aguados. Em vez disso, ela insiste em fazer suas figuras humanas e depois ficar indignada porque as pessoas que compram arte nas lojas de presente e de moldura locais não estão pretendendo pendurar quadros de estranhos nus em seus lares. Ela tem 53 anos. Quanto tempo mais vai esperar até que um marchand de Nova York a descubra? Cada um a seu modo, ela e os pais parecem ter simultaneamente chegado aos limites de se esconder como estratégia de vida. (p. 61)

Nenhuma explicação se segue. Quando Helen se vira para o pai, ele diz:
– Algumas coisas ficam melhores se forem esquecidas. (p. 62)

Embora em teoria todos soubessem que os alemães estavam próximos, quando as primeiras bombas soaram na cidade, alguns dias atrás, foi como uma fantasia, surreal e chocante. Aturdidas, as pessoas olhavam umas para as outras, descrentes. Isto não podia estar acontecendo. Não aqui, não em Leningrado. É uma loucura. Eles atiraram mísseis de longo alcance na cidade, matando mulheres, crianças e velhos, aleatoriamente. Para quê? E por que tentar queimar a cidade? De que vale uma vitória se não fica nada como crédito? (p. 66)

É estranho como se pode acostumar com as coisas. Todos os dias agora, pessoas ao redor dela morriam, pessoas que ela conhecia. No início, isto era motivo para lágrimas, mas acontece que o ser humano tem uma capacidade limitada de tristeza. (p. 187)

Ninguém chora mais, ou então chora por pequenas coisas, por momentos sem importância que as pegam desprevenidas. O que mais parte o coração? Não é a morte: a morte é banal. O que parte o coração é a visão de uma única gaivota levantando vôo facilmente de cima de um poste de rua. As asas se desfraldam como echarpes de seda contra o céu cor de malva e Marina ouve o rufar das penas. O que parte o coração é que ainda há beleza no mundo. (p. 192)

Ficha

  • Título original: The Madonnas of Leningrad
  • Autor: Debra Dean
  • Editora: Record
  • Páginas: 269
  • Cotação: 4  estrelas
  • Encontre As Madonas de Leningrado.

Era Uma Vez Um Corredor

Era Uma Vez Um Corredor - capa Quenton Cassidy é um estudante universitário mas, antes de qualquer coisa, é um corredor. Sua especialidade são as provas de uma milha e seu objetivo é fechá-las em menos de 4 minutos – um objetivo que exige sacrifícios, “quilômetros de sacrifício”, ou “o sacrifício dos quilômetros”. Tem, ainda, um outro sonho, quase indizível: ser um atleta olímpico. Era Uma Vez Um Corredor dá uma boa ideia da dureza que é a vida de um atleta de elite: o desgaste físico, o tremendo condicionamento psicológico, as constantes renúncias, a vida social quase inexistente, a dificuldade de conciliar os pesados treinos com um relacionamento amoroso.

Como pano de fundo, os Estados Unidos dos anos 70, tumultuado por questões como a Guerra do Vietnã e a discriminação no campus da Southeastern University, lar de Cassidy. Lá pelas tantas, o corredor é envolvido pelo turbilhão e resta-lhe apenas um porto seguro: Bruce Denton, medalhista olímpico e seu mentor.

Resumido assim, você poderia ficar com a impressão de que este é um livro sombrio. Não é. Na verdade, ele rende boas risadas graças ao humor negro do narrador e do próprio Cassidy, que adora uma ironia e ri das próprias desventuras – mesmo que seja um sorriso amarelo de vez em quando. Era Uma Vez Um Corredor é a história de alguém que persegue seu sonho, mesmo sem saber direito onde vai dar ou se valerá a pena; alguém que trabalha sempre no máximo, que não desiste, que é quase obcecado. Dá para entender por que o livro inspirou gerações de atletas desde a sua primeira publicação. É, também, uma inspiração para qualquer um que tenta desafiar os próprios limites, atleta ou não.

A história do seu autor também é inspiradora: John L. Parker Jr. foi, ele mesmo, um corredor universitário e conviveu com atletas olímpicos, embora o Cassidy seja apenas ligeiramente inspirado nele (o melhor tempo de Parker na corrida de uma milha foi 4:06). Escreveu o romance em 1978 e nenhuma editora quis publicá-lo; Parker vendia os livros no porta-malas do seu carro nos eventos de corrida. Apenas nos anos 90 foi republicado, e em 2009 foi relançado, já com a aclamação da crítica. Em 2007, Parker lançou a sequência Again to Carthage.

Desde sempre há boatos sobre um filme baseado no livro – sem dúvida, seria uma excelente ideia. No youtube, você pode ver um trailer falso que bem poderia ser verdadeiro:

Era Uma Vez Um Corredor é tão bem conduzido que você se pega torcendo ardentemente por Cassidy, como se ele fosse um amigo querido e você estivesse na arquibancada vendo-o competir.

Trechos

Queriam já estar na corrida. Queriam ter terminado. A disputa em si era suportável,pois era para isso que tinham treinado. A espera, no entanto, era uma experiência infernal. (p. 96)

Apesar do esforço árduo, raramente falavam em termos de dor ao comentarem o desconforto de treinos ou corridas. Sabiam que aquilo que dava à dor a sua dimensão verdadeiramente terrível era certa falta de familiaridade. e essas eram sensações que eles conheciam muito bem. (p. 147)

Ainda que as grandes distâncias proporcionem as bases da formação de um corredor, os intervalados tornam as competições mais cruéis. Quenton Cassidy gostava deles. Outros preferiam farpas de bambu sob as unhas. (p. 196)

Começaram. Os dois ou três primeiros [tiros de quatrocentos metros] sempre pareciam, de algum modo, especialmente ruins. Na verdade, era uma falsa impressão. Eles se sentiam lentos porque o corpo estava sob o choque de uma súbita exigência de velocidade constante. Depois de subirem a níveis comparáveis aos de um beija-flor, os batimentos cardíacos mantinham-se nesse ritmo por algum tempo. As pernas ficavam prematuramente pesadas, e o sistema nervoso central enviava a mensagem de que esse sacrifício não poderia ser suportado. Mas o sistema nervoso central acaba precisando se submeter, é claro, pois o corredor a essa altura sabe melhor que suas próprias sinapses o que se espera que o corpo possa ou não fazer. O corredor lida quase diariamente com essas limitações físicas absolutas, que o não corredor enfrenta apenas em situações extremas. Ao fugir de um assassino armado ou de um animal feroz, uma pessoa comum logo encontrará os assustadores limites que até o mais completo terror não pode superar. O corredor conhece esses limites tão bem quanto cada detalhe da calçada de sua vizinhança. (p. 198)

O treino de Denton normalmente exigia períodos de recuperação bastante curtos, e Cassidy ficara espantado com a maneira como ele reagia às pequenas pílulas de descanso. O fator-chave era a recuperação: quanto mais rápida fosse, mais rápido o atleta poderia correr. “Uma corrida”, Denton costumava dizer, “é cem por cento suar, e nada de bufar. Então, por que treinar descanso?” (p. 200)

Ele poderia ser o atleta mais bem-condicionado do mundo, mas, se a mente não estivesse preparada para aceitar a onda entorpecedora no começo da segunda volta, ele nem sequer terminaria a prova, muito menos a venceria. (p. 222)

Depois abriu os zíperes ao longo das pernas e apalpou ambos os tendões de aquiles de cima a baixo. Todos os nódulos e calombos tinham desaparecidos. “Trilhas suaves”, pensou, “o maldito Dentou e suas maravilhosas trilhas suaves.” Havia atravessado o inverso em perfeitas condições, só dois resfriados e nenhuma lesão de verdade. Era um homem sem um álibi. (p. 227)

Ficha

  • Título original: Once a Runner
  • Autor: John L. Parker Jr.
  • Editora: Intrínseca
  • Páginas: 246
  • Cotação: 5  estrelas
  • Encontre Era Uma Vez Um Corredor.

Morto até o Anoitecer

Morto até o Anoitecer - capaDas coisas bizarras do (meu) mundo: embora adore histórias de vampiros e seriados de qualquer tema, nunca vi a série True Blood (apesar de ter ouvido falar muito bem). Imagine, então, a minha surpresa quando descobri que Morto até o Anoitecer é o livro que deu origem à série! Descobri isso há, digamos, cinco minutos, quando fui atrás da imagem da capa do livro para ilustrar esse texto…

A protagonista (e narradora do livro) é Sookie Stackhouse, uma garçonete de 25 anos e… telepata. Sua capacidade de ler mentes a faz passar por maluca aos olhos de boa parte da população de Bon Temps, a cidadezinha em que vive. Por isso, e por exigir de Sookie um enorme autocontrole para não se deixar invadir pelos pensamentos alheios, ela vê sua habilidade mais como um incômodo do que como um dom.

Fascinada por histórias de vampiros, Sookie anseia por encontrar um ao vivo e a cores, numa época em que eles andam livremente entre os humanos (embora haja desconfianças de ambos os lados) e alimentam-se de sangue sintético. Bem, um dia, um vampiro realmente aparece no bar em que ela trabalha. Para sua completa felicidade, Sookie descobre-se incapaz de ler a mente do estranho, o que é um verdadeiro alívio, já que pode relaxar sua guarda mental.

Então, quando tudo está indo bem, assassinatos começam a acontecer na pacata cidade… e mais não conto, para não estragar a história.

Provavelmente não começaria a ver True Blood se dependesse desse livro. Não que a história seja ruim… achei-a mal escrita, isso sim. Uma ótima ideia, mal executada. O vocabulário é pobre e a trama demora um bom tempo (sem trocadilho) para fisgar o leitor. Seu mérito é que, quando finalmente o fisga, não larga mais. O suspense é bem conduzido e peguei-me tentando adivinhar a identidade do assassino – e falhei miseravelmente. As surpresas que o livro reserva fizeram-no subir no meu conceito. E aí entra o velho questionamento: será que ele é mal escrito mesmo, ou será que foi mal traduzido? Afinal, peguei um “replace” traduzido como “recolocar” (quando o certo seria “substituir”) e outros erros primários que dão mesmo margem à dúvida.

De qualquer forma, Morto até o Anoitecer não é uma obra-prima e não se compara aos primeiros livros de Anne Rice, por exemplo, mas é diversão garantida (e muito melhor que as últimas crônicas vampirescas de Rice, muito). É o primeiro de uma série de, até agora, onze livros. Há mais um prometido para 2012. Publicado em 2001, é anterior à série Crepúsculo e, comparando o livro de Charlaine Harris ao primeiro filme da saga de Stephenie Meyer (cujo livro não li), Morto até o Anoitecer é muito mais interessante, menos adolescente e até um pouco sombrio.

Ficha

  • Título original: Dead until Dark
  • Autor: Charlaine Harris
  • Editora: Prestígio
  • Páginas: 314
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre Morto até o Anoitecer.