Calabar

Calabar - edição de 1975.
Edição de 1975.

Não sou fã de ler peças teatrais. Embora adore ir ao teatro, a leitura das peças sempre me pareceu enfadonha, constantemente interrompida pelas marcações de palco. Foi, portanto, com um certo desânimo que encarei o Desafio Literário de junho. Para animar-me, resolvi vasculhar na estante do Sr. Monte e tive a grata surpresa de encontrar dois livros que habitam a casa dos meus pais desde que me entendo por gente: Calabar e Gota D’Água, peças escritas por Chico Buarque.

Calabar aproveita um acontecimento real: a ocupação de Pernambuco pelos holandeses, durante parte do século XVII. Tendo passado minha adolescência em Recife, estava familiarizada com os personagens históricos, inclusive com aquele que dá título ao livro: o traidor, o vira-casaca que, passando para o lado da Holanda, transmitiu informações decisivas para suas vitórias sobre o exército luso-brasileiro, prolongando a ocupação. Os livros didáticos não aprofundam a participação de Domingos Fernandes Calabar. Não se sabe se ele traiu o império português por mágoa, dinheiro ou idealismo (porque, de fato, a ocupação holandesa resultou num período próspero para Pernambuco, então constantemente deixada de lado pelos próprios portugueses). Provavelmente, nunca saberemos.

Chico Buarque e Ruy Guerra desgarram-se da História oficial em sua peça e dedicam-se mais a Bárbara, suposta esposa de Calabar que, após a morte do amado, entra em cena doída, arrasada, descrente da vida e da justiça. Bárbara defende que Calabar traiu Portugal por ideologia – em última análise, por amor ao Brasil. Esse é o ponto de vista que predomina no livro, que não à toa tem o subtítulo de “o elogio da traição”. Aos olhos de Bárbara, Calabar é um herói, um homem corajoso que morreu por um sonho. Em oposição, os militares luso-brasileiros são soldados cegos guiados por ordens que não questionam, morrendo por verdades alheias. Calabar, portanto, é superior a todos eles.

Bárbara divide a cena com Anna de Amsterdam, prostituta acostumada a perder no jogo do amor, que tenta consolá-la. Aqui, nota-se a grande qualidade de Chico Buarque: colocar os mais belos textos nas bocas das mulheres, como fez em várias de suas canções. É impressionante como o compositor entende a alma feminina.

Um grande mérito da peça é sua estrutura em versos. A prosa poética torna o texto ligeiro, ritmado. As interrupções para marcações de cena, felizmente, são raras. É o tipo de livro que se lê “em uma sentada”.

O ponto fraco é a despreocupação com a continuidade histórica, o que pode confundir o leitor. Ainda assim, é uma boa forma de ter contato com esse período fundamental na história da ex-colônia: é para combater os holandeses (e, finalmente, expulsá-los) que se forma, pela primeira vez, o exército brasileiro.

Para saber mais sobre a ocupação de Pernambuco pelos holandeses, o verbete Invasões holandesas no Brasil é um bom começo.

Três músicas da peça: Bárbara, Tatuagem (minha favorita) e provavelmente a mais famosa desta obra, Não existe pecado ao sul do Equador.

Ficha

  • Título original: Calabar – o elogio da traição.
  • Autores: Chico Buarque e Ruy Guerra
  • Editora: Civilização Brasileira
  • Páginas: 97
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre Calabar.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em junho é peça teatral. Conheça o Desafio Literário.

Aconteceu na Manchete

Aconteceu na Manchete - capa Uma das mais famosas revistas brasileiras (reconhecida inclusive no exterior) vista por dentro: é isso que Aconteceu na Manchete – histórias que ninguém contou entrega ao leitor, por meio de relatos de funcionários – jornalistas, fotógrafos, editores – que passaram pela redação da revista (e, frequentemente, de outras da Bloch Editores) ao longo de seus 48 anos.

A coleção de crônicas de Aconteceu na Manchete vai além de traçar um retrato de uma das revistas mais longevas do país, fazendo um esboço histórico de décadas do Brasil, ainda que tendencioso em algumas passagens. Isso é perdoável e compreensível- afinal, não se trata de um livro de história, mas de memórias, e cada personagem escreve sobre o que viveu e sentiu, com sua própria carga valorativa.

Se essa diversidade de visões é um dos atrativos do livro, também é um de seus defeitos. A falta de coesão resulta em ler duas ou três vezes a mesma história. Além disso, é estranho – mas não deixa de ser interessante – observar o rancor com que alguns textos parecem ter sido escritos. Esperar-se-ia que os participantes da coletânea em honra à revista fizessem só elogios a ela e ao tempo em que lá estiveram, mas a coisa não é bem assim: alguns colaboradores mal disfarçam suas mágoas. A célebre irreverência de Adolpho Bloch certamente não agradava a todos; e o trabalho extenuante da redação nem sempre era recompensado à altura com o pagamento no fim do mês (às vezes, nem o excelente restaurante e nem a espetacular vista da Baía de Guanabara compensavam).

Nas margens das páginas do livro, há fragmentos de reportagens de percorreram as páginas de Manchete durante os quase 50 anos da revista. Entrevistas com famosos, frases lapidares, fragmentos dos governos que passaram pelo Brasil e fatos que marcaram o mundo enriquecem a leitura.

O livro é bem organizado e visualmente atraente, como eram as edições da revista que homenageia. O fim da leitura deixa um travo de nostalgia. Talvez a falência fosse evitada se Adolpho Bloch não se embrenhasse pela televisão (a Rede Manchete consumiu rios de dinheiro). Certamente, um melhor gerenciamento – menos impulsivo, mais calculado – teria prolongado a existência da revista, que poderia estar nas bancas até hoje. A imprensa nacional ficou mais pobre com a falência da Manchete.

Trechos

Em 1992, a edição comemorativa dos 40 anos da Manchete anota: “Viajar por meio da coleção da revista é, literalmente, folhear o Brasil ou reler frases marcantes como a do atacante Dario, em 1971: ‘Vocês têm a problemática, eu tenho a solucionática’; de Joãozinho Trinta, em 1979: ‘O povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual’; de Francelino Pereira, nos anos 1970: ‘Que país é este?’; e do general João Figueiredo a populares que o vaiavam e xingavam, em Florianópolis, em 1979: ‘Minha mãe não está em pauta.'” (p. 398)

Ficha

  • Título: Aconteceu na Manchete – as histórias que ninguém contou
  • Autor: coletânea, com prefácio de João Máximo
  • Editora: Desiderata
  • Páginas: 448
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre Aconteceu na Manchete.

O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel

Esse é outro livro que só me interessou após ser filmado, como aconteceu com As Crônicas de Nárnia. Para o Desafio Literário de março (dedicado aos épicos), gostaria de ter lido os três volumes, mas só houve tempo para o primeiro. Essa, portanto, será uma resenha um tanto incompleta.

Quase desisti de O Senhor dos Anéis ainda no início. O prólogo de dezesseis página é uma das coisas mais tediosas que já li. “O livro inteiro vai ser assim? Socorro!”, pensei. Felizmente, no primeiro capítulo as coisas começam a melhorar, e seguem cada vez mais interessantes.

J. R. R. Tolkien dedicou praticamente todo o primeiro volume à apresentação dos personagens e da Terra Média. Se a descrição das regiões de seu mundo imaginário é, por vezes, cansativa, a construção dos personagens encanta e, sem dúvida, é a melhor parte de A Sociedade do Anel. É fascinante ver o amadurecimento de Frodo, as imperfeições de Gandalf e a bravura de Aragorn. Aos poucos, os protagonistas ganham contornos tão vivos que é como se convivêssemos com eles. É essa proximidade que envolve o leitor e o faz acompanhar com ansiedade o progresso da Comitiva dos Nove, respirar aliviado a cada obstáculo vencido e chorar as perdas. É essa intimidade e cumplicidade entre leitor e personagens que permite que “compremos” o mundo criado por Tolkien.

A Sociedade do Anel é um livro sobre lugares fantásticos, inimigos mortais, medo, superação (inclusive de preconceitos –  nem tudo que é ouro fulgura, nem todo o vagante é vadio) e coragem. Também é um livro sobre amizade, daquele tipo raro que sobrevive às tribulações e firma-se na lealdade em qualquer circunstância.

Dois grandes obstáculos à leitura estão na premissa da própria obra: a fantasia, que exige um salto de fé; e o gênero épico, por natureza composto de grandes gestos de heroísmo, longas cenas e (não falta neste livro) narrativa em versos. Quem não tem paciência pra isso tudo, pode até cair no sono. Confesso que o épico está entre meus estilos menos estimados, inclusive no cinema.

Lembro que, dos três filmes, A Sociedade do Anel foi meu favorito. Por outro lado, As Duas Torres e suas longas cenas de batalha entediou-me tanto que, francamente, não pretendo encarar o segundo volume da trilogia tão cedo…

Trechos

Três Anéis para os Reis-Elfos sob este céu,
Sete para os Senhores-Anões em seus rochosos corredores,
Nove para Homens Mortais, fadados ao eterno sono,
Um para o Senhor do Escuro em seu escuro trono
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
Um Anel para a todos governar, Um Anel para encontrá-los,
Um Anel para a todos trazer e na escuridão aprisioná-los
Na Terra de Mordor onde as Sombras se deitam.
(p. 52)

– Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época – disse Frodo.
– Eu também – disse Gandalf. – Como todos os que vivem nestes tempos. Mas a decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado. (p. 52-53)

– Peço desculpas, senhor! Mas não quis lhe fazer mal, Sr. Frodo, nem ao Sr. Gandalf, falando nisso. Ele é sensato, veja bem, e quando o senhor disse ir sozinho ele disse não! leve alguém em quem possa confiar.
– Mas isso não quer dizer que eu possa confiar em qualquer um – disse Frodo.
Sam lançou-lhe um olhar triste. – Tudo depende do que você deseja – interrompeu Merry. – Pode confiar em nós para ficarmos juntos com você nos bons e maus momentos, até o mais amargo fim. E pode confiar também que guardaremos qualquer um de seus segredos – melhor ainda do que você os guarda para si. Mas não pode confiar que deixaremos que enfrente problemas sozinho, e que vá embora sem dizer uma palavra. Somos seus amigos, Frodo. (p. 110-111)

– Quem mora aqui? – perguntou ele [Frodo]. – E quem construiu essas torres? Essa região pertence aos trolls?
– Não – disse Passolargo. – Os trolls não constroem nada. (p. 214)

Ficha

Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em março é o gênero épico. Conheça o Desafio Literário.

O melhor livro sobre nada

O melhor livro sobre nada.
Recordar é viver.

Se você gostava da série Seinfeld, vai gostar deste livro. Sabe aquelas piadinhas que Jerry fazia no início e no fim de cada episódio, em cima de um palco? O Melhor Livro Sobre Nada é uma coletânea delas.

Na introdução, Jerry Seinfeld explica que começou a escrever as ideias engraçadas que lhe ocorriam por volta dos 15 anos de idade. O resto é história: aos vinte e poucos, já tinha uma boa carreira fazendo stand-up comedy nos bares de Nova Iorque e em 1990 criou com Larry David sua própria sitcom. O seriado teve oito temporadas formidáveis e inegavelmente faz parte da cultura pop.

O livro (lançado nos EUA em 1993, ainda durante a produção da sitcom) traz esquetes familiares aos fãs do seriado, como as teorias sobre shoppings, a redundância que é praticar exercícios físicos para ficar em forma (para praticar exercícios físicos) e minha passagem favorita: a busca pela caixa perfeita. Como tenho memória de peixinho dourado, não me arrisco a dizer que todas as piadas do texto apareceram na televisão, mas posso apostar que a maior parte delas está nos episódios.

Esse é, ao mesmo tempo, o mérito e o defeito d’O Melhor Livro Sobre Nada: mérito por alegrar os saudosistas, defeito (perdoável, mas o principal responsável pelas 3 estrelas que dei) por trazer mais do mesmo.

Vá lá, se você nunca viu Seinfeld ainda pode curtir o livro. São coisas independentes. O único problema é que, por alguma razão que desconheço, nem todos gostam do humor de Jerry Seinfeld e você corre o risco de comprá-lo e detestar da primeira à última linha. O que não é nenhum drama, já que todos nós corremos esse risco o tempo todo (prefiro esquecer as bombas que já li ao longo de duas décadas e meia).

Trechos

Mas o que eu ganho em troca de todo o dinheiro que pago em impostos? Não tenho filhos, não uso escolas públicas. Não uso a polícia ou as prisões. Nunca chamei as Forças Armadas. Basicamente, uso o correio e a lista branca nas estradas. Ou seja, um terço da minha vida de trabalho em troca de selos e de dirigir em linha reta. (p. 97)

Há muitas coisas que você pode mostrar como prova de que os seres humanos não são inteligentes. Mas a minha prova favorita é que nós precisamos inventar o capacete. Pelo visto, o que estava acontecendo é que estávamos praticando uma porção de atividades que estavam quebrando as nossas cabeças. Decidimos não parar de fazer essas atividades e inventar um negócio para que pudéssemos continuar a gozar do nosso estilo de vida racha-crânios. O capacete. E nem isso funcionou, porque nem todo mundo usava o capacete, de modo que tivemos de inventar a lei do capacete obrigatório. O que é uma coisa ainda mais besta, porque é uma lei que visa proteger um cérebro cujo juízo é tão torto que nem tenta evitar que a cabeça onde ele está instalado se rache ao meio. (p. 105)

Minha ideia da sala de estar perfeita é a cabine de comando da Enterprise: poltrona grande, TV legal, controle remoto. Por isso, Star Trek é a fantasia de todo homem: voando pelo espaço na sua sala de estar, vendo televisão. (p. 131)

Meus pais tinham duas discussões constantes no carro: a que velocidade meu pai estava indo e quanta gasolina tinha no tanque. Meu pai tinha uma defesa padrão para qualquer acusação: “É porque você está olhando o mostrador de lado. Se você estivesse aqui, ia ver. De onde você está sentada, parece que estou a 120 por hora com o tanque vazio, mas daqui dá pra ver que estou a 80 com o tanque cheio”. (p. 149)

A morte é a última mudança da sua vida. O carro fúnebre é um caminhão de mudanças, os caras que carregam o caixão são seus amigos íntimos, os únicos a quem você pediria que ajudassem numa grande mudança como essa. E o caixão é aquela caixa grande e perfeita que você estava procurando a vida toda. O único problema é que, quando você a encontra, você está dentro dela. (p. 158)

Ficha

  • Título original: The Best Book About Nothing
  • Autor: Jerry Seinfeld
  • Editora: Frente
  • Páginas: 158
  • Cotação: 3  estrelas
  • Encontre O melhor livro sobre nada.