Contos de Horror do Século XIX

Contos de Horror do Século XIX - capaHá que ser muito hábil para fazer um bom conto. O estilo não permite digressões, não comporta longas cenas descritivas nem deixa espaço para muita elaboração em torno dos personagens; por outro lado, é preciso envolver o leitor em poucas páginas e surpreendê-lo no desfecho.

Essa tarefa fica ainda mais complexa quando se trata de contos de horror. Como tecer o necessário suspense, como criar a tensão que o horror pede sem fugir do formato? A resposta é dada pelas histórias compiladas em Contos de Horror do Século XIX. Nem todos os textos da coletânea são bem-sucedidos, mas a grande maioria cumpre muito bem a missão de envolver, assustar e surpreender o leitor.

Entre as pérolas, há autores absolutamente inusitados. Quem diria que Eça de Queiroz, por exemplo, teria um conto de horror (um dos melhores do livro, embora com desfecho um tanto previsível)? Ou Júlio Verne? Ou o poeta Walt Whitman? Ah, sim, Sir Arthur Conan Doyle também está lá, numa história anterior à criação do seu mais famoso personagem.

Há também os escritores esperados: Edgar Allan Poe (que, aliás, influenciou outros autores presentes no livro) não decepciona com o excelente Os fatos no caso do sr. Valdemar. Bram Stoker está lá com A Selvagem, fugindo da temática que o consagrou (e particularmente sinistro para os donos de gatos). Senti falta de H. P. Lovecraft – será que, tendo nascido em 1890, ele não escreveu nada ambientado no século XIX?

Os temas variam do mais mundano (uma troca de nomes levando a uma condenação errada) ao mais sobrenatural (mortos andando entre os vivos), passando por acidentes, pragas, itens enfeitiçados, loucura, violência e um navio amaldiçoado. O horror, afinal, encontra diversas maneiras de se expressar e de impressionar.

Destaco o sensacional A volta do parafuso, de Henry James – um “conto” de mais de 100 páginas, tão bem conduzido que é como se um filme saltasse das palavras; e o assustador A mão do macaco (W. W. Jacobs), que abre a coletânea.

Se você gosta do gênero, Contos de horror do século XIX é leitura indispensável; se não tem familiaridade com a literatura de horror, o livro é uma ótima forma de iniciar-se no tema, tamanha a variedade (com qualidade) que proporciona.

Ficha

  • Título: Contos de horror do século XIX
  • Organizador: Alberto Manguel
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 547
  • Cotação: 4 estrelas
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Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em novembro são contos. Conheça o Desafio Literário.

Esaú e Jacó

Esaú e Jacó - capa Os irmãos bíblicos rivais emprestam o nome ao romance centrado em Pedro e Paulo, gêmeos parecidos fisicamente e praticamente opostos no caráter. Sua vida é feita de disputas desde o ventre de sua mãe, passando por rusgas no dia-a-dia, brigas sobre política e ciúmes no amor.

Esaú e Jacó se passa entre os últimos anos da monarquia e os primeiros da república, mas sem qualquer pretensão de ser um livro de História. Machado retrata o período do ponto de vista da burguesia, dos comerciantes, do sobe-e-desce dos interessados na carreira política (e conclui ironicamente que, ao fim e ao cabo, tanto um quanto o outro regime dão na mesma). É um painel muito interessante do cotidiano daqueles anos.

Boa parte da trama se desenrola entre as paixões políticas de Paulo e Pedro e entre sua paixão pela mesma mulher, Flora. O narrador em terceira pessoa conversa com o leitor (ou melhor, com a leitora, já que na maioria das vezes prefere o gênero feminino) e intervém bastante no romance, bem mais que em Memórias Póstumas de Brás Cubas (meu livro preferido de Machado e um dos meus favoritos de todos os tempos). Incomoda um pouco no início, mas logo acostuma-se e chega a soar engraçado.

Outra coisa um tanto incômoda é a lentidão da narrativa. Esaú e Jacó tem idas e vindas, pormenores e detalhes que chegam a cansar em alguns momento, fazendo pensar “Está bem, já entendi isso, vamos seguir adiante?”. É certo que Memórias Póstumas também tem essas características, mas lá elas me pareceram mais convenientes que aqui.

Não falta a fina ironia machadiana, provocando umas boas risadas de vez em quando.

Curiosamente, meu personagem favorito foi um dos secundários: o Conselheiro Aires, um ex-diplomata que, apesar de parecer cordato a tudo, anota em seu diário os próprios julgamentos sobre o mundo e as pessoas que o cercam. Aires soou-me como o alter ego de Machado de Assis. Memorial de Aires, último livro do romancista (Esaú e Jacó foi o penúltimo) já está na minha lista de leituras futuras.

Se tenho a audácia de dar quatro estrelas para o livro é apenas porque, dentro do mesmo estilo e sendo do mesmo autor,  Memórias Póstumas de Brás Cubas continua meu favorito.

Trechos

– Não é a ocasião que faz o ladrão – dizia ele [o Conselheiro Aires] a alguém -, o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito. (p. 145)

Há muito remédio contra a insônia. O mais vulgar é contar de um até mil, dois mil, três mil ou mais, se a insônia não ceder logo. É remédio que ainda não fez dormir ninguém, ao que parece, mas não importa. (p. 154)

Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lágrimas de sangue, sem lhe merecer a menor simpatia. Que o amor, conforme as ninfas antigas e modernas, não tem piedade. Quando há piedade para outro, dizem elas, é que o amor ainda não nasceu de verdade,ou já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa primeira camisa do afeto. (p. 155)

Ficha

  • Título: Esaú e Jacó
  • Autor: Machado de Assis
  • Editora: Martin Claret
  • Páginas: 222
  • Cotação: 4 estrelas
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Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em agosto são os clássicos da literatura brasileira. Conheça o Desafio Literário.

Renato Russo – o trovador solitário

Renato Russo - o trovador solitário (capa)Não sei por que demorei tanto a ler a biografia do Renato Russo. Sou fã do cara há tanto tempo que cheguei a ter duas biografias dele, até o dia em que percebi que eram apenas edições diferentes (disfarça) e passei uma adiante.

O texto de Arthur Dapieve é muito bem conduzido. A discografia da Legião guia o passeio pela vida do seu vocalista, sem esquecer suas fases anteriores, como a da banda Aborto Elétrico e as apresentações solo como “O Trovador Solitário”. Também não foram deixadas de lado situações trágicas como o tumultuado show de 1988 em Brasília (razão pela qual a banda nunca mais tocou na cidade), nem os discos solo de Renato, que foram sua tábua de salvação numa época em que tinha duas escolhas: entregar-se ao trabalho ou à depressão.

Um dos pontos bacanas do livro é a desmistificação das lendas que rondam algumas músicas: “Dado Viciado”, por exemplo, não foi feita para o integrante Dado Villa-Lobos; o famoso casal “Eduardo e Mônica” nunca existiu (embora a Mônica da música tenha sido inspirada em uma amiga de Renato). Também há a confirmação de outras histórias: o fato de “Giz” ser sua música preferida; a decisão de se conduzir de forma absolutamente discreta quando descobriu que era portador do HIV (diferentemente do que fez Cazuza, embora Renato o admirasse).

Entre altos e baixos, Renato Russo caminhou muito cedo para a morte. Em 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, morreu de complicações ligadas à AIDS, em seu apartamento em Ipanema. Suas letras marcaram uma geração que ainda hoje se identifica com o que ele cantava. Não eram músicas feitas só para fazer barulho, ou para emplacar uma coreografia besta/vulgar, ou pra tocar no rádio (quem imaginaria que Faroeste Caboclo, com 9 minutos de duração, faria sucesso?). Eram histórias, eram poesias sobre política, incerteza, saudade, homossexualidade, medo, amor e outras tantas coisas significativas.

Senti falta de mais material histórico permeando o texto: mais fotos, mais manuscritos, um pouco do que vi na exposição do Centro Cultural Banco do Brasil há anos (guardo o catálogo até hoje). Apesar dessa lacuna, o livro é indispensável para os fãs de Renato Russo, da Legião Urbana e do rock brasileiro.

Trechos

Sou um jovem de vinte e poucos anos, não sei nada da vida. [Frase de Renato Russo.] (p. 98)

Já desisti de fazer música para salvar o mundo. Eduardo e Mônica estão divorciados. [Frase de Renato Russo.] (p. 109)

Um belo dia, o público vai descobrir que o seu ídolo tem pés de barro, e é uma coisa muito dolorosa porque messias não existem. [Frase de Renato Russo.] (p. 110)

O que era mais difícil de entender era o caminho que o repertório do disco que os havia levado até ali [o álbum “Equilíbrio Distante”] estava tomando. Todos os italianos, de Fiorella a Minna, tinham ficado pasmos quando Renato lhes dissera que pretendia gravar alguma coisa de Laura Pausini. Equivaleria ao maior cantor de rock italiano, Eros Ramazzotti, chegar ao Brasil para gravar um disco de canções em português e declarar estar muito ansioso para pegar algo do repertório de Sandy. (p. 152)

Ficha

Gota D’Água

Gota D'Água - edição de 1975.
Edição de 1975.

Há vários anos, vi uma montagem amadora de Gota D’Água. Lembro de ter achado interessante, mas não me senti realmente tocada pela peça. Ler o texto, porém, foi uma experiência completamente diferente. Eu, que não gosto de ler peças teatrais, vi-me presa àquelas páginas, percorrendo a mesma espiral de sofrimento de Joana, a protagonista.

Gota D’Água é trágica desde a sua inspiração: a tragédia grega Medéia, de Eurípedes. Chico Buarque e Paulo Pontes contextualizaram o drama clássico, situando seus personagens num cortiço do Rio de Janeiro, cercados pela pobreza e dotados de uma determinação quase instintiva de continuar seguindo em frente. Jasão é um deles, até o dia em que emplaca um samba na rádio, começa a fazer sucesso e passa a namorar Alma, filha de Creonte, o poderoso dono do cortiço. Encantado por promessas de juventude e riqueza, Jasão abandona Joana (a Medéia contemporânea), quinze anos mais velha que ele, mãe dos seus dois filhos, sem a qual ele provavelmente não teria passado de um joão-ninguém.

Todos os moradores do cortiço são envolvidos no drama amargo de Joana, seja a seu favor ou contra ela – e às vezes mudando de opinião conforme as circunstâncias. No fundo, porém, Joana está sozinha, entregue à própria amargura.  O desfecho dramático é inevitável. Resta ao leitor segurar o fôlego, esperando a morte.

Como Calabar, Gota D’Água é toda escrita em versos, cadenciando a leitura, e tem poucas marcações de palco que a atrapalhem. Seu enredo, porém, é muito mais denso, mais concreto e, portanto, mais emocionante. É difícil ler de um só fôlego uma trama tão sombria.

Ao lado do drama humano, Gota D’Água traz uma crítica social, retratando um cenário em que os ricos ficam cada vez mais ricos às custas dos pobres, que empobrecem um pouco mais a cada dia. A edição que li traz um prefácio um tanto extenso (às vezes tedioso) em que os autores discorrem sobre a desigualdade de classes gerada pela selva de pedra capitalista. Boa parte do que ali está escrito já se encontra superada, seja por novas correntes políticas, seja pela História; contudo, o texto é uma espécie de retrato intelectual do momento pelo qual passava o Brasil nos anos 70 e, sob esse aspecto, é interessante.

A peça, por sua vez, é um retrato atemporal das misérias humanas e mantém sua atualidade ao longo das décadas, como Medéia se mantém atual século após século.

Eis a música que dá título ao livro: Gota D’Água.

Ficha

  • Título original: Gota D’Água
  • Autores: Chico Buarque e Paulo Pontes
  • Editora: Civilização Brasileira
  • Páginas: 168
  • Cotação: 4  estrelas
  • Encontre Gota D’Água.
Este texto faz parte do Desafio Literário 2011, cujo tema em junho é peça teatral. Conheça o Desafio Literário.