Leite Derramado

O escritor faz jus ao talento do compositor.
O escritor faz jus ao talento do compositor.

Os dois primeiros romances do Chico Buarque não me empolgaram*. Na verdade, foram decepcionantes, não exatamente por serem ruins, mas por não estarem à altura das belíssimas contribuições de Chico à música popular brasileira.

Estorvo (1991) é opressivo. O clima de devaneio da narrativa torna-se, de fato, um estorvo. O livro incomoda, mas não se trata daquele incômodo “bom”, questionador, que desafia a inteligência. Incomoda porque é fraco.

Benjamim (1995) não me pareceu muito melhor. Considero-o o mais insignificante dos romances de Chico, incapaz de despertar prazer ou desagrado – morno, mesmo. O filme é preferível ao livro.

Em Budapeste (2004), a coisa muda de figura. A sensação de deslocamento do protagonista, de figurar em dois mundos sem saber ao certo a qual deles deseja pertencer, é ricamente transmitida na prosa-quase-poesia do livro. Quem resolveu dar mais uma chance ao Chico escritor foi recompensado.

Esse ano, Leite Derramado é uma recompensa ainda maior.

O ponto de partida é singelo: o centenário Eulálio Assumpção recorda sua vida inteira enquanto está preso a um leito de hospital.

A história da ilustre família Assumpção – que confirma ao bordão “pai rico, filho nobre, neto pobre” – mescla-se à história do Brasil. O leitor passeia pelas riquezas do império e pelo senado republicano, pelo período escravocrata e pela miséria cotidiana. Críticas sociais e de costumes permeiam a narrativa, embora não seja esta a intenção de Eulálio, que chega à ingenuidade em certos momentos. É de arrancar risadas irônicas, por exemplo, seu comentário sobre o avô, “grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais  de vocês” (p. 51).

São tantas recordações entre gerações passadas e futuras da família Assumpção que os personagens se misturam e o leitor mais aplicado terá dificuldades em traçar sua árvore genealógica, assemelhando-se à confusão que Gabriel García Márquez cria em Cem Anos de Solidão.

O moribundo repete histórias, cria versões, perde-se em reminiscências sobre casas que já não existem, riquezas incertas, eventos confusos e pessoas misteriosas. Conta fatos para negá-los em seguida, imagina (ou admite?) traições. Eulálio divaga, conduzindo o leitor à divagação. O que será verdade, dentre todas as lembranças? Não importa. O que vale é deixar-se levar pela correnteza narrativa.

Em comum, os quatro romances de Chico Buarque têm o onirismo, a descontinuidade narrativa e a prosa bem-cuidada. Em Leite Derramado, Chico fez excelente uso desses três elementos e somou-os a uma história emocionante, sem esquecer-se do humor. Enfim, o romancista mostra-se tão talentoso quanto o compositor.

Em tempo: Leite Derramado inspira-se abertamente na canção O Velho Francisco.

Ficha Técnica

  • Título: Leite Derramado
  • Autor: Chico Buarque
  • Editora: Companhia das Letras
  • Páginas: 195
  • Cotação: 5 estrelas
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* Chico Buarque tem outros três livros, anteriores à sua fase de romancista: A bordo do Ruy Barbosa (poesias), Fazenda Modelo (fábula política) e Chapeuzinho Amarelo (infantil).

500 Anos de Sabor

No colégio, História era minha matéria favorita. No dia-a-dia, o interesse por comida (e por comer, obviamente) é constante. Claro que um livro juntando essas duas delícias chamaria minha atenção. Apesar disso, Brasil 1500/2000: 500 Anos de Sabor mofou na minha estante por anos (talvez desde 2000, de fato). Eu não sabia o que estava perdendo.

O livro é um verdadeiro passeio pela história gastronômica do Brasil. Da Colônia até os dias atuais, passando pelas contribuições dos índios, dos negros e das várias correntes migratórias, 500 Anos de Sabor é uma leitura fascinante, nada diet e capaz de agradar até quem não curte esquentar a barriga no fogão ou ler sobre batalhas, datas e figuras históricas. Afinal, todo mundo gosta de uma boa mesa (aliás, eis aí um bom jeito de motivar o estudo da História).

Conta-se, por exemplo, que a onipresente mandioca veio dos índios (ao passo que sua bebida preferida, o cauim, não caiu nas graças dos europeus – felizmente); que a mesa portuguesa só ganhou sabor de verdade com os temperos trazidos pelos negros em honra aos seus orixás; que entradas e bandeiras enriqueceram a culinária nacional com pratos rápidos e de fácil conservação, como a paçoca de carne-seca; que as Grandes Guerras, assolando a Europa, fizeram os olhos e o paladar brasileiros voltarem-se para os vizinhos norte-americanos.

A discussão sobre a origem da feijoada também está presente, claro:

Feijoada
Quem resiste?

Como toda paixão, a feijoada costuma gerar acaloradas polêmicas. Teria mesmo nascido na senzala? Não teria muito mais a ver com receitas portuguesas mesmo, das regiões da Estremadura, do Alto Douro e Trás-os-Montes, que misturam feijão de vários tipos, menos o feijão preto, a linguiças, orelhas e pés de porco, e que se recomenda comer com arroz, especialmente na terça-feira de carnaval? Não seria uma receita muito mais moderna, surgida ali pelo final do século passado [XIX], a partir de informações culinárias de outros países, já então mais frequentes no Brasil, inspiradas por outros cozidos, como o cassoulet francês, que também leva feijão – branco – no seu preparo?

(…)

O que se pode fazer com segurança, para chegar mais perto da verdade, é relembrar um pouco os hábitos alimentares da senzala brasileira, nos dois primeiros séculos de colonização. (…)

Quando a escassez de comida não era tanta, suas refeições básicas juntavam a onipresente farinha de mandioca à carne ou peixe, além dos vegetais que estivessem à mão. E quando podiam, os escravos procuravam manter sua alimentação de origem, que não prescindia do feijão preto, trazido por eles da África, mais muita pimenta-malagueta como tempero. Dos senhores de engenho recebiam às vezes restos de carnes, mais a permissão para entrar nos pomares, servindo-se das frutas disponíveis, entre elas a laranja. E a aguardente costumava ser distribuída até com fartura, menos por generosidade e mais para estimular a alegria, aumentando assim, quem sabe, o empenho na lida dos canaviais.

Feijão preto, restos de carnes, farinha de mandioca, pimenta, laranja, até a bebida – não é difícil reconhecer na união desses elementos um parentesco bem próximo com a nossa feijoada contemporânea. (…) Não deve ser mera coincidência.

Às margens do texto, poesia, prosa, ditos populares e canções ilustram a fusão entre culinária e cultura.

500 Anos de Sabor foi patrocinado pelo Pão de Açúcar em 2000 e não é mais vendido; quase nem escrevo sobre ele.  O Neto Cury (que me lembrou dos sebos), a Cynthia Semíramis (que falou sobre a preservação da memória do livro) e a Júlia Reis (que nem sabia que o livro tinha a ver com a praia dela) disseram que isso não é razão suficiente pra não falar dele. Estão certos. O texto é bacana, as receitas (mais de duzentas) vão da maniçoba à charlotte russe e, veja só, dá pra comprá-lo na Estante Virtual, meu sebo favorito.

Ficha Técnica

  • Título: 500 Anos de Sabor – Brasil 1500-2000
  • Autora: Eda Romio
  • Ano de edição: 2000
  • Editora: ER comunicações
  • Páginas: 248
  • Encontre na Estante Virtual.

A Conversa Chegou à Cozinha de quem?

Já está passando da hora de dizer quem ganhou os livros A Conversa Chegou à Cozinha e O Mundo É O Que Você Come. Afinal, a promoção encerrou-se no dia 20 de março.

Foram poucas, mas belas participações. Renderam-me viagens no tempo e água na boca.

Agora, sem mais delongas…

A Conversa Chegou À Cozinha da Gabi Bianco!

O texto da Gabi foi o mais inspirador pra mim. Não só porque sou uma descendente de italianos apaixonada por massas, mas porque macarrão ao molho de tomate é um dos pratos favoritos da minha mãe.

A todos os participantes, muito obrigada! Espero que tenham gostado de fazer os textos como gostei de os ler.

Gabi, o pessoal da editora vai entrar em contato contigo e mandar os livros para a sua casa logo, logo. 🙂

Como Ser Legal

Como Ser Legal

Li Alta Fidelidade há alguns anos e ele entrou fácil na minha lista de Top 5. Não é à toa que passei a correr atrás dos outros livros do Nick Hornby. Como Ser Legal é o segundo que leio e, embora não seja tão formidável quanto Alta Fidelidade, traz uma história muito bem contada.

Já de início, chama a atenção a escolha de uma mulher como personagem narradora. Nick Hornby foi tão bem-sucedido descrevendo relacionamentos do ponto de vista masculino… será que conseguiria o mesmo do lado oposto? A resposta é sim, ele conseguiu. Captou, inclusive, a facilidade das mulheres para elocubrações, em contraponto à secura (objetividade?) masculina.

Se bem que, lá pelas tantas, a coisa muda de figura – não por inabilidade do autor, mas por exigência mesmo da história. Kate passa a ser a metade objetiva do casamento, cabendo a David alimentar delírios, rompantes messiânicos e uma incrível esperança no ser humano.

Enquanto David, acompanhado de seu recém-descoberto guru Boas Novas e de sua filha de oito anos, faz planos para salvar o mundo (e parte para a prática), Katie, médica competente e mãe dedicada, começa a se perguntar o que é ser legal, de fato. Ela, que se achava tão contribuidora para o bem da sociedade, passa a rever seus conceitos e comportamentos, buscando descobrir o que é ser, realmente, uma boa pessoa.

Nesse ponto, o livro resvala perigosamente numa filosofia pretensiosa, mas recupera-se a tempo. O humor do texto, o cinismo dos personagens e as tentativas inusitadas de David para salvar o mundo mantêm a história num tom casual e pra lá de divertido.

Pinceladas

Falhei com minha filha. Molly só tem oito anos de idade, e anda triste… Eu não queria isso. Quando ela nasceu, eu tinha certeza de que poderia evitar isso, e não consegui. Percebo que a tarefa que assumi era irrealista e irrealizável, mas isso não faz diferença: acabei contribuindo para a criação de mais um ser humano confuso e assustado. (p. 144)

Casar e criar uma família é como emigrar. Eu vivia no mesmo país que meu irmão, e compartilhava os valores, gostos e atitudes dele; depois fui embora. Apesar de não notar, comecei a falar com um sotaque diferente e a pensar de forma diferente. Embora recordasse minha terra natal afetuosamente, já perdera todas as características dela. Atualmente, porém, quero voltar para casa. Vejo que cometi um grande erro, que o novo mundo não é aquilo que se supõe e que as pessoas de lá são muito mais saudáveis e sábias do que as pessoas que vivem no país que eu adotei. Quero que meu irmão me leve com ele. Nós podíamos ir para a casa da mamãe e do papai. Seríamos mais felizes lá. Mark não era um suicida quando morava lá, e eu não era cheia de preocupações e culpas. Seria ótimo. Provavelmente brigaríamos para escolher os programas de televisão, mas fora isso… E não cometeríamos os erros de antes. Não resolveríamos que queríamos crescer e viver vidas próprias. Já tentamos isso e não deu certo. (p. 247-248)

Ficha Técnica

  • Título: Como Ser Legal
  • Título Original: How To Be Good
  • Autor: Nick Hornby
  • Editora: Rocco
  • Páginas: 307
  • Cotação: 4 estrelas
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