Dica de teatro em São Paulo: “Quando tudo estiver pronto”.
Não acredito que quase deixei passar esse post. “Quando tudo estiver pronto” é uma das melhores peças que vi nos últimos anos.
A história começa no fim do Shivá, o período de sete dias de luto que sucede o enterro na tradição judaica. Marido, filho, sogros e cunhada estão tentando voltar à rotina após a morte repentina de Estela, a responsável pela harmonia familiar. E então…
Não vou contar o que acontece, mas já aviso que todas as resenhas da peça contam. Pesquise por sua conta e risco. Eu não sabia o que esperar e adorei não ter sabido.
O texto é um drama com boas pitadas de comédia. Os temas são universais: morte, luto, família. Os atores estão excelentes.
Em cartaz no Teatro Folha (Shopping Pátio Higienópolis) até 15 de setembro. Corre!
Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, na Viena recém-ocupada pelos nazistas, um rapaz de 17 anos começa a deixar de ser um garoto para tornar-se um adulto. O crescimento vem com aprendizados sobre amor, perda, morte, traição e amizade, contando com a ajuda inusitada de Sigmund Freud.
O filme, coprodução Áustria/Alemanha, é baseado em romance homônimo. As ótimas atuações são complementadas por uma edição precisa e pela bela fotografia. A história é sensível e provoca reflexões… afinal, pessoas comuns acreditaram na barbárie nazista e na propaganda do partido. Se você era antinazista, era automaticamente comunista, uma falsa polarização que gerou uma cegueira coletiva. Dito isso, não é uma história ostensivamente política, mas sim de formação.
Em exibição nos cinemas a partir de amanhã.
Estrelinhas no caderno:
Ps.: tenho ouvido tanto falar de Freud nos últimos dias, por caminhos tão variáveis, que é impossível não pensar no conceito de sincronicidade de Jung – oh, the irony!
Dica de teatro em SP: “Merlin e Arthur, um Sonho de Liberdade”. Musical com canções do grande Raul Seixas. Arthur sonha com um país unido, com harmonia entre bretões e romanos. A esperança se torna urgência ante a ameaça de invasão pelos saxões. Ao seu lado, conta com Lancelot e Guinevere. Conseguirá realizar seu sonho?
A peça integra muito bem recursos digitais – Vera Holtz, Merlin, aparece nessa mídia – e tem coreografias excelentes. As canções do Raul Seixas encaixam bem. Atores ótimos (Paulinho Moska convence após a primeira cena), com destaque para a fisicalidade cômica do Dreadmor. A peça podia ter uns 20 minutos a menos e a percussão podia ser menos forte para não encobrir as vozes.
O texto provoca reflexões políticas oportunas, além de falar de amor e a amizade.
Em cartaz no Teatro Frei Caneca. A temporada acaba dia 18 de agosto, então corre.
Quenton Cassidy é um estudante universitário mas, antes de qualquer coisa, é um corredor. Sua especialidade são as provas de uma milha e seu objetivo é fechá-las em menos de 4 minutos – um objetivo que exige sacrifícios, “quilômetros de sacrifício”, ou “o sacrifício dos quilômetros”. Tem, ainda, um outro sonho, quase indizível: ser um atleta olímpico. Era Uma Vez Um Corredor dá uma boa ideia da dureza que é a vida de um atleta de elite: o desgaste físico, o tremendo condicionamento psicológico, as constantes renúncias, a vida social quase inexistente, a dificuldade de conciliar os pesados treinos com um relacionamento amoroso.
Como pano de fundo, os Estados Unidos dos anos 70, tumultuado por questões como a Guerra do Vietnã e a discriminação no campus da Southeastern University, lar de Cassidy. Lá pelas tantas, o corredor é envolvido pelo turbilhão e resta-lhe apenas um porto seguro: Bruce Denton, medalhista olímpico e seu mentor.
Resumido assim, você poderia ficar com a impressão de que este é um livro sombrio. Não é. Na verdade, ele rende boas risadas graças ao humor negro do narrador e do próprio Cassidy, que adora uma ironia e ri das próprias desventuras – mesmo que seja um sorriso amarelo de vez em quando. Era Uma Vez Um Corredor é a história de alguém que persegue seu sonho, mesmo sem saber direito onde vai dar ou se valerá a pena; alguém que trabalha sempre no máximo, que não desiste, que é quase obcecado. Dá para entender por que o livro inspirou gerações de atletas desde a sua primeira publicação. É, também, uma inspiração para qualquer um que tenta desafiar os próprios limites, atleta ou não.
A história do seu autor também é inspiradora: John L. Parker Jr. foi, ele mesmo, um corredor universitário e conviveu com atletas olímpicos, embora o Cassidy seja apenas ligeiramente inspirado nele (o melhor tempo de Parker na corrida de uma milha foi 4:06). Escreveu o romance em 1978 e nenhuma editora quis publicá-lo; Parker vendia os livros no porta-malas do seu carro nos eventos de corrida. Apenas nos anos 90 foi republicado, e em 2009 foi relançado, já com a aclamação da crítica. Em 2007, Parker lançou a sequência Again to Carthage.
Desde sempre há boatos sobre um filme baseado no livro – sem dúvida, seria uma excelente ideia. No youtube, você pode ver um trailer falso que bem poderia ser verdadeiro:
Era Uma Vez Um Corredor é tão bem conduzido que você se pega torcendo ardentemente por Cassidy, como se ele fosse um amigo querido e você estivesse na arquibancada vendo-o competir.
Trechos
Queriam já estar na corrida. Queriam ter terminado. A disputa em si era suportável,pois era para isso que tinham treinado. A espera, no entanto, era uma experiência infernal. (p. 96)
Apesar do esforço árduo, raramente falavam em termos de dor ao comentarem o desconforto de treinos ou corridas. Sabiam que aquilo que dava à dor a sua dimensão verdadeiramente terrível era certa falta de familiaridade. e essas eram sensações que eles conheciam muito bem. (p. 147)
Ainda que as grandes distâncias proporcionem as bases da formação de um corredor, os intervalados tornam as competições mais cruéis. Quenton Cassidy gostava deles. Outros preferiam farpas de bambu sob as unhas. (p. 196)
Começaram. Os dois ou três primeiros [tiros de quatrocentos metros] sempre pareciam, de algum modo, especialmente ruins. Na verdade, era uma falsa impressão. Eles se sentiam lentos porque o corpo estava sob o choque de uma súbita exigência de velocidade constante. Depois de subirem a níveis comparáveis aos de um beija-flor, os batimentos cardíacos mantinham-se nesse ritmo por algum tempo. As pernas ficavam prematuramente pesadas, e o sistema nervoso central enviava a mensagem de que esse sacrifício não poderia ser suportado. Mas o sistema nervoso central acaba precisando se submeter, é claro, pois o corredor a essa altura sabe melhor que suas próprias sinapses o que se espera que o corpo possa ou não fazer. O corredor lida quase diariamente com essas limitações físicas absolutas, que o não corredor enfrenta apenas em situações extremas. Ao fugir de um assassino armado ou de um animal feroz, uma pessoa comum logo encontrará os assustadores limites que até o mais completo terror não pode superar. O corredor conhece esses limites tão bem quanto cada detalhe da calçada de sua vizinhança. (p. 198)
O treino de Denton normalmente exigia períodos de recuperação bastante curtos, e Cassidy ficara espantado com a maneira como ele reagia às pequenas pílulas de descanso. O fator-chave era a recuperação: quanto mais rápida fosse, mais rápido o atleta poderia correr. “Uma corrida”, Denton costumava dizer, “é cem por cento suar, e nada de bufar. Então, por que treinar descanso?” (p. 200)
Ele poderia ser o atleta mais bem-condicionado do mundo, mas, se a mente não estivesse preparada para aceitar a onda entorpecedora no começo da segunda volta, ele nem sequer terminaria a prova, muito menos a venceria. (p. 222)
Depois abriu os zíperes ao longo das pernas e apalpou ambos os tendões de aquiles de cima a baixo. Todos os nódulos e calombos tinham desaparecidos. “Trilhas suaves”, pensou, “o maldito Dentou e suas maravilhosas trilhas suaves.” Havia atravessado o inverso em perfeitas condições, só dois resfriados e nenhuma lesão de verdade. Era um homem sem um álibi. (p. 227)