Ou melhor, as mulheres e os homens de Mario Prata, que resolveu transformar em livro sua agenda telefônica. O resultado é o desfile de mais de duzentas pessoas – várias delas, famosas – em histórias indiscretas, curiosas, algumas melancólicas, quase todas divertidas.
Você vai descobrir, por exemplo, que o Julinho da Adelaide ficou furioso com o Chico Buarque, acusando-o de querer aparecer às suas custas. Lerá uma carta da Marília Gabriela, pessoal como são as cartas para os amigos. Vai rir com a experiência revolucionária de Prata na época da ditadura militar e com detalhes da criação de suas novelas e livros. Conhecerá muita gente de Lins, cidade em que cresceu o cronista. Até personalidades internacionais dão as caras, como Gabriel García Márquez. Mario Prata é um homem de muitos contatos!
O livro vem em ordem alfabética, como toda agenda telefônica. O autor aconselha a leitura em ordem cronológica e apóio a escolha. Afinal, esse monte de fragmentos é uma autobiografia, com toques de história recente do Brasil. Nada melhor que ler na ordem em que os fatos aconteceram. Claro que, ainda assim, ficarão dúvidas, incertezas, perguntas da maior importância jamais respondidas – pra quem será que o Chico Buarque compôs “Olhos nos Olhos’, afinal de contas?
Primeiro livro da Marian Keys que leio, só caiu nas minhas mãos porque veio de um sebo a um precinho camarada – afinal, ora bolas, quem precisa de mais um livro à la Helen Fielding? Por mais que goste de Bridget Jones (e gosto muito do primeiro livro) ou, a propósito, de Becky Bloom, não estava a fim de investir meu tempo em outra história parecida.
Para minha surpresa, porém, o livro de Marian Keyes tem pouco a ver com os outros.
Sim, todos pertencem ao que se convencionou chamar de “literatura mulherzinha”, mas as semelhanças páram por aí. Em É Agora… ou Nunca há três protagonistas, em vez de uma só. Todos na casa dos 30, cada qual tem problemas que vão bem além de aguentar a mãe na festa de fim de ano ou resistir a impulsos consumistas.
Katherine é conhecida no trabalho como“Miss Gelo” e tem claros entraves para se relacionar com o sexo oposto. Tara acomodou-se num relacionamento infeliz. Fintan é o mais bem-resolvido, até que algo acontece para tirar-lhe do prumo.
Ainda há suas famílias, seus colegas de trabalho, a amiga sueca e vários outros personagens. Alguns parecem totalmente irrelevantes mas, cedo ou tarde, encontram seu lugar na trama.
Keyes conta uma história simples (mas nem sempre leve), com lances cotidianos e um tanto de situações pelas quais já passamos ou vimos alguém passar. Seu mérito é fazê-lo com excelente ritmo. Você pensa “só vou ler mas 5 páginas” e, quando nota, já se foram 5 capítulos. Já estou de olho em outros livros da autora.
Primeiro livro de John Grisham, publicado em 1988, Tempo de Matar é considerado por muitos críticos o melhor da sua carreira.
A história é semelhante à de vários dos seus livros: advogado recém-formado precisa construir reputação e ganhar dinheiro, portanto aceita um caso difícil, com alto risco de derrota; a vitória, ainda que improvável, significaria fama e fortuna.
A trama começa quando dois homens brancos drogados violentam Tonya, uma menina negra de dez anos em Clanton, cidadezinha do Mississipi (sul dos Estados Unidos). Inconformado e certo de que não haverá justiça para os estupradores de sua filha, Carl Lee Hailey mata os dois – e, claro, vai a julgamento. É aí que entra Jack Brigance, advogado em início de carreira que tentará defender Hailey contra as provas, a opinião pública e a Ku Klux Klan. Os motivos de Brigance não são os mais altruístas no início, mas pouco a pouco o advogado vê-se envolvido e comovido pela situação da família de Hailey.
O foco do livro é a questão racial norte-americana, em evidência até hoje e muito mais nos anos 80. Naquela sociedade, é aceitável que homens brancos estuprem uma garotinha negra? Para a maioria, talvez não; para alguns, certamente sim. O que parece intolerável, porém, é que seu pai resolva se vingar. Não pelo justiçamento, mas por ser negro – como um operário negro se acha no direito de matar dois jovens brancos?
Além da questão racial, Tempo de Matar destaca-se pela discussão em torno do sistema legal, da pena de morte, da sua eficácia e dos valores a serem defendidos pelo Direito. O tribunal do júri também é posto em debate.
A história é densa, provoca a reflexão e tem viradas emocionantes. Não acho que seja o melhor livro de Grisham, no entanto. Prefiro textos posteriores, conduzidos com mais agilidade e fluência pelo advogado-escritor. Na reta final do romance, Grisham parece ansioso por terminá-lo, justo quando seria bom enrolar um pouco. Talvez a crítica incense Tempo de Matar por trazer um tema tão sensível à sociedade norte-americana, não propriamente por seus méritos literários. De toda a forma, é um livro muito bom.
A história virou um ótimo filme em 1996, com Matthew McConaughey, Sandra Bullock e Samuel L. Jackson. O livro passou anos esgotado no Brasil (meu exemplar veio daEstante Virtual), mas foi relançado em 2008.
Os dois primeiros romances do Chico Buarque não me empolgaram*. Na verdade, foram decepcionantes, não exatamente por serem ruins, mas por não estarem à altura das belíssimas contribuições de Chico à música popular brasileira.
Estorvo (1991) é opressivo. O clima de devaneio da narrativa torna-se, de fato, um estorvo. O livro incomoda, mas não se trata daquele incômodo “bom”, questionador, que desafia a inteligência. Incomoda porque é fraco.
Benjamim (1995) não me pareceu muito melhor. Considero-o o mais insignificante dos romances de Chico, incapaz de despertar prazer ou desagrado – morno, mesmo. O filme é preferível ao livro.
Em Budapeste (2004), a coisa muda de figura. A sensação de deslocamento do protagonista, de figurar em dois mundos sem saber ao certo a qual deles deseja pertencer, é ricamente transmitida na prosa-quase-poesia do livro. Quem resolveu dar mais uma chance ao Chico escritor foi recompensado.
Esse ano, Leite Derramado é uma recompensa ainda maior.
O ponto de partida é singelo: o centenário Eulálio Assumpção recorda sua vida inteira enquanto está preso a um leito de hospital.
A história da ilustre família Assumpção – que confirma ao bordão “pai rico, filho nobre, neto pobre” – mescla-se à história do Brasil. O leitor passeia pelas riquezas do império e pelo senado republicano, pelo período escravocrata e pela miséria cotidiana. Críticas sociais e de costumes permeiam a narrativa, embora não seja esta a intenção de Eulálio, que chega à ingenuidade em certos momentos. É de arrancar risadas irônicas, por exemplo, seu comentário sobre o avô, “grande benfeitor da raça negra. Creiam que ele visitou a África em mil oitocentos e lá vai fumaça, sonhando fundar uma nova nação para os ancestrais de vocês” (p. 51).
São tantas recordações entre gerações passadas e futuras da família Assumpção que os personagens se misturam e o leitor mais aplicado terá dificuldades em traçar sua árvore genealógica, assemelhando-se à confusão que Gabriel García Márquez cria em Cem Anos de Solidão.
O moribundo repete histórias, cria versões, perde-se em reminiscências sobre casas que já não existem, riquezas incertas, eventos confusos e pessoas misteriosas. Conta fatos para negá-los em seguida, imagina (ou admite?) traições. Eulálio divaga, conduzindo o leitor à divagação. O que será verdade, dentre todas as lembranças? Não importa. O que vale é deixar-se levar pela correnteza narrativa.
Em comum, os quatro romances de Chico Buarque têm o onirismo, a descontinuidade narrativa e a prosa bem-cuidada. Em Leite Derramado, Chico fez excelente uso desses três elementos e somou-os a uma história emocionante, sem esquecer-se do humor. Enfim, o romancista mostra-se tão talentoso quanto o compositor.
Em tempo: Leite Derramado inspira-se abertamente na canção O Velho Francisco.
* Chico Buarque tem outros três livros, anteriores à sua fase de romancista: A bordo do Ruy Barbosa (poesias), Fazenda Modelo (fábula política) e Chapeuzinho Amarelo (infantil).