O Carrasco do Amor

O Carrasco do Amor - capaQuem já fez terapia passou por isso: a insegurança ao ver o terapeuta mudo na sua frente, apenas anotando, acenando a cabeça ou simplesmente encarando você. Dá vontade de sacudi-lo pelos ombros e, embora ninguém chegue a esse ponto (acho eu), muita gente pergunta “Ei, o que você está pensando sobre tal ou qual coisa que eu te disse?”. Em geral, a única resposta dada pelo terapeuta é… outra pergunta.

O Carrasco do Amor sacia um pouco da curiosidade dos pacientes em saber o que pensam os terapeutas. O escritor, psiquiatra há mais de 30 anos, selecionou dez casos para explorar questões centrais recorrentes em terapia e, por tabela, o relacionamento paciente-terapeuta.

A faceta que Yalom mostra é até humana demais. Em alguns momentos, peguei-me revivendo as minhas sessões e me perguntado “Será que era isso que minha terapeuta pensava? Será que aquela cara impassível escondia sentimentos tão fortes? Será que em algum momento ela sentiu desprezo ou uma profunda antipatia por mim?” A resposta, na verdade, não importa. Não podemos controlar como as outras pessoas nos percebem, e isso vale também para o nosso terapeuta; e como ele nos percebe é, simplesmente, problema dele – algo que ele, se achar necessário, deve trabalhar como paciente diante de outro terapeuta. Para seus próprios pacientes, basta que seja dedicado e profissional.

Um efeito colateral das histórias é que o leitor provavelmente se identificará com algum (ou alguns) dos pacientes, ou com fragmentos das vivências de alguns deles. Assim, embora sejam examinadas vidas alheias, os ensaios provocam uma autoanálise, um movimento para dentro de si mesmo que deveria ser praticado com mais frequência em busca do autoconhecimento. Justamente por esse movimento auto-reflexivo, o livro é interessante para qualquer pessoa, tenha ou não passado por um processo terapêutico (cá entre nós, acho que todo mundo se beneficiaria por fazer um ano ou dois de terapia, no mínimo).

Trechos

Descobri que quatro dados são particularmente relevantes para a psicoterapia: a inevitabilidade da morte para cada um de nós e para aqueles que amamos, a liberdade de viver como desejamos, nossa condição fundamental de solidão e, finalmente, a ausência de qualquer significado ou sentido óbvio para a vida. (p. 12)

A liberdade significa que a pessoa é responsável por suas próprias escolhas, ações e condição de vida. Embora a palavra responsável possa ser utilizada de várias maneiras, prefiro a definição de Sartre: ser responsável é “ser o autor de”, cada um de nós sendo assim o autor de seu próprio plano de vida. Nós somos livres para sermos qualquer coisa, exceto não livres – nós estamos, diria Sartre, condenados à liberdade. (p. 16)

Todo terapeuta sabe que o primeiro passo crucial na terapia é a aceitação por parte do paciente da responsabilidade pela sua condição de vida. (p. 16)

A liberdade não apenas requer que aceitemos a responsabilidade por nossas escolhas de vida, como também pressupõe que a mudança demanda um ato de vontade. (p. 17)

Um dos grandes paradoxos da vida é que a autoconsciência provoca angústia. A fusão elimina a angústia de modo radical – eliminando a autoconsciência. A pessoa que se apaixonou e ingressou em um bem-aventurado estado de fusão não é auto-reflexiva, pois o eu solitário questionador (e a concomitante angústia do isolamento) se dissolve no nós. Assim, a pessoa se livra da angústia, mas perde a si mesma. (p. 19)

Somente quando sentimos um insight na carne é que o reconhecemos. Somente então podemos agir e mudar. Psicólogos populares falam continuamente sobre “aceitação da responsabilidade”, mas essas são só palavras: é extremamente difícil, inclusive aterrorizante, chegar ao insight de que você, e apenas você, constrói seu próprio plano de vida. Assim, o problema na terapia é sempre como ir de uma apreciação intelectual ineficaz de uma verdade a respeito de si próprio até uma experiência emocional dessa verdade. É somente quando a terapia provoca profundas emoções que ela se torna uma poderosa força para a mudança. (p. 43)

Talvez o credo terapêutico mais importante para mim seja que a vida não examinada não vale a pena ser vivida. (p. 55)

Jamais tire qualquer coisa se você não tiver nada melhor para oferecer em troca. Tome cuidado ao desnudar um paciente que não pode suportar o frio da realidade. E não se canse combatendo o encantamento religioso: você não é páreo para ele. A sede pela religião é forte demais, suas raízes profundas demais, seu reforço cultural poderoso demais. (p. 167)

Ficha

  • Título Original: Love’s Executioner
  • Autor: Irvin D. Yalom
  • Editora: Ediouro
  • Páginas: 286
  • Cotação: 3 estrelas
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House a a Filosofia – todo mundo mente

House e a Filosofia - todo mundo mente.
E nunca é lúpus.

Para quem curte cultura pop e filosofia, a coleção organizada por William Irwin é um achado. Li alguns volumes (os mais antigos), tenho outros na lista de espera e este ano, embora não devesse comprar livro algum antes de esgotar a pilha monstruosa que habita meu armário, não resisti e encomendei House e a Filosofia.

Como os outros volumes da coleção, este é uma coletânea de ensaios. Cada texto aborda um tema diferente do seriado House por uma perspectiva filosófica. Alguns artigos cuidam de episódios específicos, outros dão uma visão geral; uns enxergam aspectos utilitaristas, outros kantianos, alguns discutem temas como o amor e por aí afora. Tem até ensaísta que conseguiu enxergar, imagine só, filosofia zen em House. É, também fiquei surpresa.

A maioria dos ensaios é bem interessante. O que trata de filosofia zen pareceu-me forçação de barra e não me agradou – mas, quando isso acontece, resta o consolo de que os textos são curtos. Por outro, o artigo House e Sartre: “O Inferno são os outros” é tão bacana que me interessaria ler um livro inteiro sobre o tema (possivelmente porque sempre gostei do existencialismo e o ensaio analisa meu episódio favorito, One Day, One Room).

É, sem dúvida, livro para fãs do seriado.  Gostar de filosofia ajuda, mas essa coleção tem o mérito de contextualizar os filósofos e usar linguagem acessível, sendo um ótimo primeiro contato para quem acha que a filosofia é abstrata demais ou difícil demais.

Trechos

Toda espécie de amor envolve uma capacidade de confiar, uma abertura para se magoar e uma vulnerabilidade em relação a outra pessoa. É por isso que House tem dificuldade não só para amar uma mulher, mas também para ter amigos. Mesmo com Wilson, seu único amigo, ele está sempre na defensiva. A amizade dos dois baseia-se apenas na habilidade de Wilson em mantê-la vida, em sua capacidade para perdoar House e ser paciente. Sem dúvida, House afeiçoa-se a Wilson, mas faz tudo para dominá-lo. Isso pode funcionar em um relacionamento entre amigos, que é menos rígido e exclusivo que um relacionamento romântico. Mas sua luta para controlar tudo não pode dar certo no contexto de eros, para o qual uma espécie peculiar de intimidade confiável é fundamental. (p. 169)

House nos fascina, em parte, porque ele é bom demais em seu trabalho e muito ruim em todo o resto, e esses dois fatos parecem relacionados. Queremos que House seja uma pessoa melhor? Não, se estivermos sofrendo de alguma doença misteriosa. Nesse caso, não nos importaríamos de tolerar sua rudeza, desonestidade e propensão a burlar a lei. (p. 190)

Ficha

  • Título original: Dewey – the small-town librery cat who touched the world
  • Coordenação de William Irwin
  • Editora: Madras
  • Páginas: 208
  • Cotação: 4 estrelas
  • Encontre House e a Filosofia: todo mundo mente.

A Linguagem da Paixão

A Linguagem da Paixão
Ensaios cheios de beleza e reflexão.

O peruano Mario Vargas Llosa costuma ser lembrado como escritor de ficção (premiado, diga-se). Acontece que Vargas Llosa tem outro talento: o de ensaísta. A linguagem da paixão registra essa faceta ao reunir alguns dos seus textos escritos para o jornal El País entre 1992 e 2000.

É traiçoeira essa prática de compilar em livro aquilo que foi escrito dentro de um dado contexto histórico, em determinada época e sob condições bem próprias. Muitas vezes, tirados de seu lugar de nascimento, crônicas contemporâneas perdem não só importância, mas até mesmo coerência diante de um leitor quinze ou vinte anos à frente daquele a quem os textos foram inicialmente endereçados. Felizmente, quase todos os ensaios de A linguagem da paixão sobrevivem muito bem a esse deslocamento espaço-temporal, graças, sobretudo, à excelente prosa de Vargas Llosa e a sua clareza ímpar ao defender suas ideias. Afinal, ele não fica em cima do muro; seus ensaios não são meros relatos impessoais, mas textos vibrantes e carregados de opinião.

De fato, Vargas Llosa não é de meias palavras nos elogios e muito menos nas condenações que faz. Assim é que não poupa críticas ao regime comunista e aos atrasos que causou em tantos países (e ainda causa em Cuba) ou aos ditadores populistas latino-americanos. Também censura veementemente a ingerência da igreja em políticas de estado, como as atinentes ao controle de natalidade, e a hipocrisia por trás da condenação da eutanásia. Por outro lado, exalta as qualidades de artistas (nem todos conhecidos do grande público), escreve um resumo emocionante das agruras e conquistas de Nelson Mandela e dedica uma crônica tocante à sua sala de leitura favorita, meses antes de ser fechada. Mesmo os textos motivados por acontecimentos pontuais, como um falecimento ou o recebimento de um prêmio, são interessantes, em sua maioria, pela paixão com que foram escritas.

Os ensaios de A linguagem da paixão são um ótimo entretenimento e, mais que isso, excelentes instrumentos de reflexão sobre diversos temas que vão pelo mundo, sobre os quais frequentemente não refletimos. Certamente, deveríamos exercitar com mais frequência essa tal reflexão – seja para discordar, seja para concordar com os contundentes argumentos de Vargas Llosa.

Trechos

Nenhum Estado deveria obrigar alguém a ter menos filhos do que quiser nem ter mais filhos do que gostaria ou pudesse ter. Essa política tão simples, ditada pelo bom senso, é contudo uma utopia em sociedades que ainda não fizeram da sua uma civilização democrática. (p. 56)

O grande instrumento da democracia não é o livro, mas a televisão. […] A pequena tela conseguiu realizar aquela desmedida ambição que sempre ardeu no coração da literatura e que esta nunca alcançou: chegar a todo mundo, fazer comungar a sociedade inteira com suas “criações”. (p. 75)

Se em alguma parte a prostituição converteu-se, como na Mahoganny manipulada pelos implacáveis avarentos que são a viúva Begbick e seus pistoleiros, na única escapatória possível da fome e na frustração das jovens sem recursos, não foi em Nova York ou Los Angeles – onde as prostitutas ganham mais do que os escritores e além disso não pagam impostos -, mas na Cuba de Fidel Castro, uma sociedade na qual também a luta pelas verdinhas atingiu os níveis ferozes e desumanos que aparecem na cidade brechtiana. (p. 253)

A falácia maior dos argumentos antiaborto é que são apresentados como se o aborto não existisse e só passasse a existir a partir do momento em que a lei o aprove. (p. 257)

O jornalismo escandaloso, sensacionalista, é um enteado perverso da cultura da liberdade. Não pode ser suprimido sem infligir a esta uma ferida talvez mortal. (p. 266)

O multiculturalismo não é uma doutrina que nasceu na África, na Ásia ou na América Latina. Nasceu longe do Terceiro Mundo, no coração do Ocidente mais próspero e civilizado, quer dizer, nas universidades dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, e suas teses foram desenvolvidas por filósofos, sociólogos e psicólogos animados por uma ideia perfeitamente generosa: a de que as culturas pequenas e primitivas deviam ser respeitadas, que tinham tanto direito a existir como as grandes e modernas. Nunca puderam imaginar a perversa utilização que se faria dessa idealista doutrina. Porque, se é verdade que todas as culturas têm alguma coisa que enriquece a espécie humana e que a coexistência multicultural é proveitosa, daí não se depreende que todas as instituições, costumes e crenças de cada cultura sejam dignas de igual respeito e devam gozar, por sua simples existência, de imunidade moral. Tudo é respeitável numa cultura enquanto não constitua uma violação flagrante dos direitos humanos, quer dizer, dessa soberania individual que nenhuma categoria coletivista – religião, nação, tradição – pode apoderar-se sem revelar-se como desumana e inaceitável. É esse exatamente o caso dessa tortura infligida às meninas africanas que se chama circuncisão. (p. 272-273)

Ficha

  • Título original: El lenguaje de la pasión
  • Autor: Mario Vargas Llosa
  • Editora: Arx
  • Páginas: 343
  • Cotação: 4 estrelas
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A Ciência Médica de House

A Ciência Médica de House Norte-americanos têm um talento especial para capitalizar em cima de qualquer filme ou seriado – na verdade, em cima de tudo que se torne popular. Desde revistas em quadrinhos até brinquedos da Disney, passado por bonecos, os caras inventam tudo. Agora, a moda são os tais universos expandidos, como fizeram para Lost e Heroes. Os fãs, claro, consomem tudo que podem, seja dedicando seu tempo, seja abrindo a carteira.

Provavelmente, o modelo de exploração mais tradicional são os livros, graças ao seu baixo custo, tanto para quem produz quanto para o público, e à sua capacidade de alimentar a imaginação. Há centenas de histórias sobre Star Trek, Star Wars e Arquivo X, por exemplo, que jamais estiveram nos planos dos seus idealizadores. Às vezes, não passam de fanfics – contos ou romances escritos por fãs, que circulam livremente na internet e, antes, ocupavam os fanzines “de papel xerox”. Algumas histórias são publicadas e, eventualmente, passam a integrar a mitologia oficial das produções. Também há as novelizações de filmes e episódios.

E, claro, existem os livros de referência. Enciclopédias, dicionários, guias de episódios, de civilizações, de citações, de lugares, de comidas que tal seriado exibiu… tudo que possa ser catalogado/copiado/listado vira livro de referência. É óbivo que todos são caça-níqueis – afinal, você paga (caro, às vezes) por eles. Alguns não passam disso (para que, em nome do Grande Pássaro da Galáxia, alguém precisa aprender a falar klingon?). Outros são realmente bons, interessantes e inspirados, como os livros da coleção “________ e a Filosofia”.

Quando vi A Ciência Médica de House, fiquei na dúvida sobre que tipo de caça-níqueis seria. Comprei, li e, oh boy, é caça-níqueis do tipo bom.

Se há uma queixa, é a de que o livro foi escrito cedo demais. Os episódios usados como exemplos pelo autor, jornalista especializado em medicina (daí a linguagem acessível do livro), limitam-se às duas primeiras temporadas da série. Algumas descrições do livro seriam perfeitamente ilustradas por episódios mais recentes, como o da histeria coletiva (Airbone, episódio 18 da terceira temporada – e sim, isto foi um spoiler, mas o episódio já passou no Brasil há um ano). No mais, não há o que reclamar.

Uma das melhores coisas da ficção é que você aprende sobre assuntos com os quais, normalmente, não teria contato. “________ e a Filosofia” aprofunda esse processo muito bem, discorrendo sobre conceitos filosóficos ao analisar séries e filmes. A Ciência Médica de House tem a mesma qualidade, apoiando-se na série a fim de traduzir aspectos da medicina para o público leigo: como funcionam exames e testes; o sistema de saúde norte-americano; a burocracia; o processo de diagnóstico e por aí afora.

House M.D. - divulgação da quarta temporada Outro aspecto muito interessante é a análise do comportamento do Dr. Gregory House. O autor destaca que, na vida real, um médico arrogante, viciado e prepotente como House não duraria nada num hospital-escola, ainda que fosse um gênio do diagnóstico. Aliás, não duraria em canto nenhum e mal teria tempo para fazer outra coisa além de defender-se em tribunais. A agravante é que, na vida real, não há ninguém tão sagaz a ponto de fazer os diagnósticos mais brilhantes e prescrever os tratamentos mais obscuros sem obedecer às normas e sem cometer, no processo, muitos erros médicos.

Os últimos parágrafos do livro (ora, não é um romance, não estou “estragando o final”) resumem bem a idéia:

Um renegado médico brilhante, como o dr. House, que marcha sobre a burocracia e a convenção médica em sua batalha individual para salvar seus pacientes, é muito mais interessante do que os metódicos médicos que seguem as diretrizes e os protocolos mais recentes, tentando não causar mais mal do que bem com seus testes e tratamentos.

No entanto, quando você entra em um avião para atravessar o país, está procurando diversão ou um vôo sem sustos que o leve de maneira segura para o destino informado em seu bilhete? E se um dia precisar ser hospitalizado, com sua vida em jogo, que tipo de médico você realmente vai querer que esteja no controle de seu caso?

O público assiste a House e imagina se as doenças mirabolantes que aparecem no seriado são mesmo possíveis. Talvez também se pergunte se um médico como Dr. House é possível. Bem, surpreendentemente, o livro indica que as doenças da série são muito mais factíveis que seu protagonista.

Mas quem se importa? Eu quero é diversão.

Ficha Técnica

  • Título original: The Medical Science of House, M.D.
  • Autor: Andrew Holtz
  • Primeira edição (nos EUA): 2006.
  • Editora: Best Seller
  • Páginas: 283
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Imagens: divulgação.