Em novembro de 2005, resolvi conhecer a Serra Gaúcha. Foram 8 dias excelentes, plenos de passeios, comes e bebes, compras e diversões variadas.
Quando você opta por um pacote turístico, tem a chance de conhecer algo além do roteiro: gente. As pessoas que passam contigo esses dias, andando de ônibus pra cima e pra baixo, pedindo “tira uma foto pra mim”, dividindo a mesa do café-da-manhã no hotel, tornam-se companheiras, amigas de ocasião. Você sabe que não vai revê-las, mas são parte integrante do pacote e tornam a viagem mais interessante.
Algumas marcam mais que outras, claro.
Tinha o quarteto de velhinhas que tagarelavam o tempo todo e compravam horrores. Parecia que os espíritos de meninas de 16, 18 anos tinham se enganado e tomado conta daquelas sexagenárias (ou septuagenárias, sabe-se lá) cheias de energia.
Tinha o jovem casal em lua-de-mel, cheio de planos, carinhos e brilho nos olhos. Enquanto os dois passeavam, sabiam que seus pais estavam arrumando a casa que seria seu novo lar ao retornarem.
Tinha uma família inteira: pai, mãe, três filhos e uma cunhada resolveram tirar férias juntos, curtir a companhia uns dos outros e descobrir um pouco mais sobre a cultura dos seus antepassados italianos. O patriarca não cabia em si de tanta alegria.
Tinha o casal idoso que nunca havia andado de avião. Sua filha economizara por meses para ajudar a bancar a viagem, parte de um presente de aniversário de casamento cujo desfecho seria uma enorme festa-surpresa no dia da volta à casa.
Tinha a mulher cheia de expectativas sobre seu futuro: acabara o supletivo de segundo grau e passara no vestibular há poucos dias, estava namorando e pensava em ter filhos.
No mesmo vôo de volta, estávamos todos no mesmo avião e o trajeto Porto Alegre-São Paulo foi uma farra. Espalhados entre nós, os poucos passageiros que não eram do pacote assistiam resignados à nossa bagunça. Alguns trocaram seus lugares conosco, na esperança de terem um pouquinho de paz. Aproveitávamos para registrar as últimas imagens do passeio, trocar emails e fazer promessas de eu-te-mando-aquela-foto.
O vôo chegou a Congonhas no horário previsto. Quase todos desembarcaram – só seis de nós seguimos viagem para Brasília.
Nunca revi ou troquei emails com a maioria daqueles companheiros de viagem. Sei que os jovens que estavam em lua-de-mel continuam felizes e que a festa de recepção ao casal idoso foi um dos últimos momentos daquele senhor com sua família.
Logo que li sobre a tragédia com o Airbus da TAM, em 17 de julho passado, revi todos os rostos.
Lembrei-me das brincadeiras, dos papos no ônibus, do cansaço sereno ao fim da viagem. Lembrei-me dos rostos, sotaques, histórias, sorrisos. Pensei nas pessoas que meus companheiros de viagem tinham deixado para trás com a certeza de torná-las a ver dias depois.
E se os netos das quatro velhinhas nunca mais ganhassem os abraços e beijos das avós, que falaram deles a viagem toda?
E se os pais do casal em lua-de-mel se vissem dentro de um novo lar que nunca receberia seus moradores?
E se os parentes e amigos da família paulistana não tivessem ninguém para recepcionar no aeroporto?
E se os convidados para a festa de boas-vindas preparada para o casal idoso recebessem a notícia de que ele jamais voltaria para casa?
E se o futuro da mulher recém-universitária não existisse?
Quando ouço alguma notícia sobre tragédia com o Airbus, quando a contagem de corpos reconhecidos é atualizada, quando vejo o descaso com que as autoridades tratam o caso, quando assisto ao jogo de empurra-empurra, quando tenho a nítida sensação de que tudo vai dar em nada, a imagem que me ocorre não é nenhuma das exaustivamente exibidas pela imprensa nos últimos dias. A imagem que me ocorre é a dos meus companheiros de viagem naquela volta de Porto Alegre.
Os passageiros do vôo da TAM eram exatamente como aquele grupo. Gente com família, amigos, sonhos, esperanças, futuro. Pessoas que aguardavam o abraço no aeroporto ao desembarcarem, ou que planejavam o dia seguinte de trabalho. Gente que deixou pendências, suspiros, brigas mal-resolvidas, sorrisos, roupa no varal, filho na escola.
Vidas que se tornam números do caos aéreo, somados aos do acidente da Gol há 11 meses.
Tem gente que acha que é um número pequeno e afirma que as estradas mal-conservadas do Brasil matam muito mais por semana. Como se um descalabro justificasse o outro.
Eu só posso imaginar a dor dos que perderam alguém nessa tragédia. E não consigo vê-la como algo pequeno.
Este texto faz parte da blogagem coletiva Vôo JJ 3054 – Uma Cena, organizada por Gustavo D’Andrea.