Quarentenando

O último dia “normal” por aqui foi 17 de março. De lá pra cá, saí de casa seis vezes.

Amo ficar em casa, mas estava acostumada a sair pelo menos cinco vezes por semana, entre trabalho e academia. Estava acostumada a descer pro mercado em frente sempre que dava na telha e a sentir o sol na pele quase todos os dias (impossível dentro de casa nessa época do ano). Estava acostumada a viajar nos feriados e férias, tinha uma viagem internacional em abril com uma amiga e planejava uma viagem nacional este mês (passaria o São João em São Luís e conheceria os lençóis maranhenses).

Aí veio o coronavírus e – planos, o que são essas coisas? São de comer ou de passar no cabelo?

Meio que rolaram as fases do luto por aqui.

Março foi de negação. Fui ao cinema com a Simone no dia 12, só parei de ir pra academia quando ela fechou (no dia 17), só cancelei a viagem quando a empresa aérea cancelou o vôo (no dia 18).

Logo depois veio a raiva pelos planos desfeitos, pelo prejuízo financeiro e pelas férias do ano todo arruinadas (quem vai ter coragem de fazer turismo em 2020?). Uma frase martelou aqui dentro constantemente: “Eu não queria que isso estivesse acontecendo durante a minha vida”.

Lembrei-me do que minha geração sofreu com a AIDS: o medo, a falta de informações, os ídolos morrendo – alguns definhando em praça pública -, a promessa de sexo livre (criada pela geração anterior) roubada ou, pelo menos, mutilada. Parecia que já tínhamos passado pelo suficiente.

Claro que isso não é verdade. Não há “suficiente”, não há uma “quota” destinada a cada geração. Muitas passaram por coisas muito piores. Dentro da minha geração, muita gente passou e passa por coisas piores. (E vidas negras importam, sim!)

A ficha caiu quando vi uma citação de O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel que, além de retratar meu pensamento, dava uma resposta à altura:

“I wish it need not have happened in my time”, said Frodo.

“So do I”, said Gandalf, “and so do all who live to see such times. But that is not for them to decide. All we have to decide is what to do with the time that is given us”.

——

– Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época – disse Frodo.

– Eu também – disse Gandalf. – Como todos os que vivem nestes tempos. Mas a decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.

Aí começou a fase da barganha, do “vou aproveitar essa fase para fazer tais e quais coisas, pra desengavetar esse e aquele projeto”. Essa fase rendeu frutos, com um boom de produtividade inicial, a conclusão do primeiro rascunho de um romance (que detestei) e um surto de leituras/filmes/séries. Durou pouco, porque bateu o cansaço – claro – e porque meu trabalho aumentou.

Era inevitável que viesse a fase da depressão. Tive uns quinze dias de inércia quase absoluta, com o abandono total ou quase de hábitos dos quais preciso para manter a saúde física e mental. Foi curta porque não foi clínica e porque mais de quarenta anos me deram mecanismos para reconhecer as sombras e lançar-lhes luz.

Pra ser honesta, a tristeza continua por aqui. Não poderia ser de outro jeito, dado o período que estamos vivendo, a COVID, as mortes, as pessoas que conheço que foram afetadas, o que vejo no meu trabalho todos os dias, as notícias, o descalabro desse governo. Difícil seria não sentir tristeza.

O que me leva à fase de aceitação.

Aceitação de que a vida mudou, de que vivemos tempos difíceis, incertos, inseguros, de que há perigos à espreita – e não só o vírus. Aceitar permite reagir, criar novas rotinas, buscar novos mecanismos de superação (e resgatar os antigos). Permite olhar além do próprio umbigo, também, especialmente porque tenho a sorte de ter um trabalho e um salário, de ter saúde, de ter meus pais com saúde, de ter amigos com saúde e de ter sofrido poucas perdas, quando as comparo com as de outras pessoas. Tenho a sorte de ser resiliente e de ter uma boa capacidade de deixar o passado no passado e seguir olhando em frente.

Algumas coisas ainda doem.

Dói muito ouvir as notícias.

Mas vai ficar tudo bem.

Dreamblood – Duologia

Você acha que já leu todo tipo de fantasia? Leia N. K. Jemisin. Ela foge aos clichês do gênero e cria histórias poderosas com palavras exatas. O leitor é conduzido com esmero por um mundo novo e logo tem a sensação de ter nascido nesse mundo. É o que acontece na duologia Dreamblood.

O primeiro livro, “Killing Moon”, demora um pouco a engrenar, o que não é raro em livros de fantasia com worldbuilding complexo. Quando engrena, agarra o leitor e não solta mais. Senti-me no deserto com Ehiru e Nijiri, compartilhei suas incertezas e naveguei com eles no mundo dos sonhos – eles são Gatherers, sacerdotes da deusa Hananji e do templo Hetawa que usam magia para (entre outras coisas) conduzir a alma dos suplicante ao além-vida. Subitamente, veem-se envolvidos por uma intriga política que começa sutilmente e se revela uma grande ameaça.

O segundo livro, “The Shadowed Sun”, transcorre no mesmo mundo, dez anos depois. Dessa vez, acompanhei os Sharers, outra vocação no Hetawa. Numa simplificação, se Gatherers curam a alma, Sharers curam o corpo, também por meio de magia e do mundo dos sonhos. Hanani, única Sharer mulher, enfrenta um enorme desafio enquanto tenta se encontrar em meio às exigências do Hetawa e às suas próprias necessidades. Jemisin me fez sentir as angústias de Hanani com tanta força que às vezes era preciso interromper a leitura.

O worldbuilding é excelente e os personagens são complexos e multifacetados, mas a força da escrita de N. K. Jemisin é a construção de relacionamentos. Essa habilidade torna Dreamblood uma história inesquecível.

Infelizmente, ainda não há tradução para o português. O jeito é ler em inglês ou aguardar a tradução pela @editoramorrobranco.

@soterradaporlivros e a @livroseletricos também resenharam a duologia (era pra ser leitura coletiva, eu flopei), vai lá ver.

Estrelinhas no caderno: 5 estrelas

O Nome do Vento

Fazia tempo que eu não lia um livro de fantasia que realmente me fizesse entrar na história. “O Nome do Vento” foi um belo resgate do meu gosto pelo gênero.

O livro de Patrick Rothfuss narra a infância e os primeiros anos da adolescência de Kvothe. Em meio a perdas violentas, traumas e a luta para sobreviver a cada dia, Kvothe encontra ajuda, amigos, mentores e o amor. Enquanto busca a resposta para a maior tragédia da sua vida, aprende magia e, mais que isso, resiliência – e começa a se tornar um herói.

O autor escreve o meu estilo de fantasia: economiza descrições e foca na trama, sem esquecer de criar personagens cativantes. O único defeito é que o livro é o primeiro de uma trilogia, e fujo de séries – mas essa vou acabar lendo.

Estrelinhas no caderno: 4 estrelas

Luta de Classes

@a2filmesoficial me chamou pra pré-estreia de “Luta de Classes” ano passado, mas não rolou. Tinha ficado curiosa e foi o primeiro filme que escolhi para aproveitar o #festivalvariluxemcasa.

“Luta de Classes” narra as desventuras de francesa em um mundo novo, em que as interações interculturais são a regra, embora nem sempre sejam felizes. Os pais insistem que o filho continue a frequentar a escola pública do bairro, em meio a outros franceses que carregam adjetivos extras: “muçulmanos”, “negros”, “pobres”. A convivência nem sempre é pacífica para o filho do casal, e os pais terão que fazer escolhas difíceis.

Ousando tocar em temas difíceis, a dramédia trata dos choques sociais, religiosos e culturais com um olhar sensível, aproveitando-se do universo infantil e escolar para mostrar que somos mais fortes se somarmos nossas diferenças.

Estrelinhas no caderno: 3 estrelas