O peruano Mario Vargas Llosa costuma ser lembrado como escritor de ficção (premiado, diga-se). Acontece que Vargas Llosa tem outro talento: o de ensaísta. A linguagem da paixão registra essa faceta ao reunir alguns dos seus textos escritos para o jornal El País entre 1992 e 2000.
É traiçoeira essa prática de compilar em livro aquilo que foi escrito dentro de um dado contexto histórico, em determinada época e sob condições bem próprias. Muitas vezes, tirados de seu lugar de nascimento, crônicas contemporâneas perdem não só importância, mas até mesmo coerência diante de um leitor quinze ou vinte anos à frente daquele a quem os textos foram inicialmente endereçados. Felizmente, quase todos os ensaios de A linguagem da paixão sobrevivem muito bem a esse deslocamento espaço-temporal, graças, sobretudo, à excelente prosa de Vargas Llosa e a sua clareza ímpar ao defender suas ideias. Afinal, ele não fica em cima do muro; seus ensaios não são meros relatos impessoais, mas textos vibrantes e carregados de opinião.
De fato, Vargas Llosa não é de meias palavras nos elogios e muito menos nas condenações que faz. Assim é que não poupa críticas ao regime comunista e aos atrasos que causou em tantos países (e ainda causa em Cuba) ou aos ditadores populistas latino-americanos. Também censura veementemente a ingerência da igreja em políticas de estado, como as atinentes ao controle de natalidade, e a hipocrisia por trás da condenação da eutanásia. Por outro lado, exalta as qualidades de artistas (nem todos conhecidos do grande público), escreve um resumo emocionante das agruras e conquistas de Nelson Mandela e dedica uma crônica tocante à sua sala de leitura favorita, meses antes de ser fechada. Mesmo os textos motivados por acontecimentos pontuais, como um falecimento ou o recebimento de um prêmio, são interessantes, em sua maioria, pela paixão com que foram escritas.
Os ensaios de A linguagem da paixão são um ótimo entretenimento e, mais que isso, excelentes instrumentos de reflexão sobre diversos temas que vão pelo mundo, sobre os quais frequentemente não refletimos. Certamente, deveríamos exercitar com mais frequência essa tal reflexão – seja para discordar, seja para concordar com os contundentes argumentos de Vargas Llosa.
Trechos
Nenhum Estado deveria obrigar alguém a ter menos filhos do que quiser nem ter mais filhos do que gostaria ou pudesse ter. Essa política tão simples, ditada pelo bom senso, é contudo uma utopia em sociedades que ainda não fizeram da sua uma civilização democrática. (p. 56)
O grande instrumento da democracia não é o livro, mas a televisão. […] A pequena tela conseguiu realizar aquela desmedida ambição que sempre ardeu no coração da literatura e que esta nunca alcançou: chegar a todo mundo, fazer comungar a sociedade inteira com suas “criações”. (p. 75)
Se em alguma parte a prostituição converteu-se, como na Mahoganny manipulada pelos implacáveis avarentos que são a viúva Begbick e seus pistoleiros, na única escapatória possível da fome e na frustração das jovens sem recursos, não foi em Nova York ou Los Angeles – onde as prostitutas ganham mais do que os escritores e além disso não pagam impostos -, mas na Cuba de Fidel Castro, uma sociedade na qual também a luta pelas verdinhas atingiu os níveis ferozes e desumanos que aparecem na cidade brechtiana. (p. 253)
A falácia maior dos argumentos antiaborto é que são apresentados como se o aborto não existisse e só passasse a existir a partir do momento em que a lei o aprove. (p. 257)
O jornalismo escandaloso, sensacionalista, é um enteado perverso da cultura da liberdade. Não pode ser suprimido sem infligir a esta uma ferida talvez mortal. (p. 266)
O multiculturalismo não é uma doutrina que nasceu na África, na Ásia ou na América Latina. Nasceu longe do Terceiro Mundo, no coração do Ocidente mais próspero e civilizado, quer dizer, nas universidades dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, e suas teses foram desenvolvidas por filósofos, sociólogos e psicólogos animados por uma ideia perfeitamente generosa: a de que as culturas pequenas e primitivas deviam ser respeitadas, que tinham tanto direito a existir como as grandes e modernas. Nunca puderam imaginar a perversa utilização que se faria dessa idealista doutrina. Porque, se é verdade que todas as culturas têm alguma coisa que enriquece a espécie humana e que a coexistência multicultural é proveitosa, daí não se depreende que todas as instituições, costumes e crenças de cada cultura sejam dignas de igual respeito e devam gozar, por sua simples existência, de imunidade moral. Tudo é respeitável numa cultura enquanto não constitua uma violação flagrante dos direitos humanos, quer dizer, dessa soberania individual que nenhuma categoria coletivista – religião, nação, tradição – pode apoderar-se sem revelar-se como desumana e inaceitável. É esse exatamente o caso dessa tortura infligida às meninas africanas que se chama circuncisão. (p. 272-273)
Ficha
- Título original: El lenguaje de la pasión
- Autor: Mario Vargas Llosa
- Editora: Arx
- Páginas: 343
- Cotação:
- Encontre A Linguagem da Paixão.