Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão

Paixão Pagu - capaPatrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, é mais que uma escritora modernista. Em Paixão Pagu, ela narra seus mais íntimos pensamentos, seus conflitos e tormentos, desnudando uma mulher à frente da sua época, feminista (embora nem se usasse ainda o termo), determinada e, ao mesmo tempo, insegura e perdida. Em busca de ideais superiores, deixa-se atrair pelas promessas do então nascente movimento comunista. Pelo partido, Pagu abandona a família, arrisca a vida, se prostitui, dá-se de corpo e alma à causa operária. No partido tem suas primeiras decepções em relação ao comunismo, que aumentam ainda mais quando tem a chance de ver a real situação na China e na União Soviética. Percebe que tudo não passava de um sonho vazio, de promessas vãs. Percebe que o comunismo apenas perpetua a exploração dos mais fracos pelos mais poderosos – que, aqui, não são os capitalistas, mas os líderes do partido. Troca-se uma injustiça social por outra ainda mais severa.

Isso tudo está em Paixão Pagu, livro que, originalmente, era uma longa carta escrita por Pagu para seu marido, enquanto estava presa (pela segunda vez) por atividades comunistas durante o governo de Getúlio Vargas. Na carta, Pagu fala da sua iniciação sexual, aos 12 anos, da primeira gravidez, aos 14, da primeira decepção amorosa, do casamento sem amor com Oswald de Andrade, das traições do marido. Menciona sua admiração inicial pelos intelectuais da época (no Brasil e na Argentina), seguida de um profundo desprezo. Narra, principalmente, sua paixão de primeira hora pela causa comunista, sua entrega incondicional, os constantes e perversos sacrifícios a que foi submetida pelo partido, até enfim perceber as mentiras, a falácia, o vazio dos discursos pelos quais teria dado a vida se lhe fosse pedido.

A carta acaba assim, envolta em decepção na Rússia socialista. A vida de Pagu continua ao lado de Geraldo Ferraz (esse sim, um casamento com amor e confiança). Nos anos seguintes à sua libertação, Pagu escreveu crônicas e romances, trabalhou em jornais e continuou na política, sendo candidata a deputada estadual de São Paulo pelo Partido Socialista Brasileiro em 1950. Parece, contudo, que jamais encontrou paz. Tentou se matar em 1949, e novamente em 1962, já muito doente (morreria no mesmo ano, de câncer).

O livro é o relato apaixonado de uma mulher que, se tivesse nascido uns 30 anos mais tarde, seria libertária como Leila Diniz. Na época em que viveu, foi sobretudo infeliz.

Trechos

Eu procurava. Sem saber o quê. Sem nada esperar. Alguma coisa que me absorvesse com certeza. Um nervosismo intenso me levava a expansões físicas. Fazia esporte. Nadava quase todo dia para exaurir-me. Tinha momentos de grande enternecimento junto de meu filho. Mas eu repelia esses momentos. Eu sofria muito, desconhecendo a causa desse sofrimento. Uma noite, andei pelas ruas vazias, chorando; depois, muitas outras noites. (p. 74)

Contei-lhe minhas apreensões sobre Rudá [primeiro filho de Pagu], que soubera estar novamente com pneumonia. Estava angustiada, mas sabia que não deixaria Santos naquele momento. R. sorria. O sorriso clássico dos que chamamos proletários intelectualizados, que só mais tarde percebi não conter apenas desprezo pela pequena burguesia. R. tinha as feições que o partido dava a seus militantes depois de algum tempo. Adquire-se o hábito da atitude comunista, como se familiariza com a nomenclatura convencional. Em grande parte devido à hierarquia moral que os próprios militantes constroem, eu também respeitei como novata esse estigma de superioridade. Cada pensamento meu que não fosse forte e calmo me enchia de vergonha.
Foi com um tom de infinito desprezo que R. atacou o que designava como aviltante sentimentalismo. E com toda a vontade de atingir arranjou essas palavras:
– E se seu filho morresse hoje?
Senti apenas que estava muito quente e pude responder:
– Os filhos dos trabalhadores estão morrendo de fome todos os dias. O importante é a nossa tarefa de agora.
Por que falei assim? Senti como falseados os meus sentimentos. Estava também principiando a formar atitudes. Odiei-me pela cretinice e desonestidade comigo mesma. (p. 83)

Qualquer descrição é inútil. Quem se tinha por revolucionária só poderia ver um terço da população chinesa vivendo nos juncos dos rios. Eu tenho pudor da realidade da China. É tudo tão miseravelmente absurdo, que eu nunca tive coragem ou ânimo de narrar o que encontrei ali. A mentira, a fábula grotesca me horroriza pelo ridículo e eu mesma penso que tudo que vi foi mentira. (p. 144)

Boris tinha ido comprar bombons, que eu queria para meu filho, e eu o esperava num canto da Praça Vermelha do Kremlin. Examinava as construções essencialmente russas, admirando o serviço de trânsito, dirigido por mulheres uniformizadas magnificamente. Estava interessada pelos dólmãs brancos e pelo garbo espontâneo de seus movimentos, quando senti que me puxavam o casaco. era uma garotinha de uns oito ou nove anos em andrajos. Percebi que pedia esmola. Que diferença das saudáveis crianças que eu vira na Sibéria e nas ruas de Moscou mesmo. Os pés descalços pareciam mergulhar em qualquer coisa inexistente, porque lhe faltavam pedaços de dedos. Tremia de frio, mas não chorava com seus olhos enormes. Todas as conquistas da revolução paravam naquela mãozinha trêmula estendida para mim, para a comunista que queria, antes de tudo, a salvação de todas as crianças da Terra. E eu comprava bombons no mundo da revolução vitoriosa. Os bombons que tinham inscrições de liberdade e abastança das crianças da União Soviética. Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças? (p. 150)

Ficha

  • Título original: Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão
  • Organizador: Geraldo Galvão Ferraz
  • Editora: Agir
  • Páginas: 159
  • Cotação: 3  estrelas
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