Vida musicada

Às vezes, era pura música. Tudo que a prendia à realidade eram os sons. Parecia-lhe que se desvanecia junto com cada acorde, renascendo no próximo, num movimento constante.

Música a envolvia, música a seduzia, música era a única forma de se aproximar dela. Tudo o mais restava inútil. Seus sentidos todos concentrados nos sons e alheios ao resto do mundo. Uma espécie autismo, uma compreensão limitada e, por outro lado, tão mais abrangente que a das pessoas ao seu redor.

Nessas horas, ou dias, tinha a sensação de não precisar de nada nem de ninguém. Pouco se lhe dava se dormia ou não, se havia comido ou se o telefone tocava. Importava-lhe somente os instrumentos e vozes que lhe chegavam como única ligação com a realidade. Eles a inebriavam como conhaque. Neles navegava, boiava, mergulhava, como em águas tranqüilas e mornas.

Sua maior vontade, seu desejo íntimo e não revelado, nessas águas sonoras, era mergulhar até as profundezas, soltando todo o ar no trajeto, para jamais voltar à tona.

Para gostar de ler

Hoje em dia, tudo é em alta velocidade. Esse comportamento frenético atinge inclusive (ou principalmente?) os internautas – blogueiro que escreve mais de dez linhas arrisca-se a não ser lido, por “falta de tempo”.

O Henrique não teve essa preocupação, felizmente. Eu, como sei que ele é um escritor excelente, também não hesitei em parar por alguns minutos para ler um texto um pouco maior que o padrão bloguístico. Sorte minha: fui premiada com uma história maravilhosa, que despertou-me nostalgia e, agora, compartilho com vocês.

As mulheres que eu amei não estão mais lá

Uma reunião de amores juvenis inspirada
por um texto de Caio Fernando Abreu
lido no dia dos namorados de 2005.

Bairro novo e colégio também. Ela espera na saída junto comigo e me chama pelo sobrenome. Éramos da mesma classe. Era truco ou coisa do tipo que se brincava na nossa idade. Não dou sempre o devido valor de suas conversas. Nem sei mais como era sua voz. O ano muda e é cada um numa nova turma. Ela pára de falar comigo e só assim percebo a falta que ela me fazia. Escrevo cartas anônimas. Pondero em mandar presentes tolos que minha mesada não me permite comprar. Ligo duas vezes e ela não reconhece minha voz. Tempo e ouço no jornal que sua mãe morrera. Ainda a vejo uma última vez em pé no ônibus e eu sentado no banco de passageiros com minha mãe dirigindo o carro. Ela não está mais de pé nos ônibus que eu hoje vejo.

Todos são muito mais velhos do que eu na praia. No chopp da noite meu tio me chama pra dar-mos uma volta. Ele me paga fichas de video-game e uma menina da minha idade vem falar comigo. Me embaralho todo em dividir a atenção entre ela e a máquina. Depois meu tio iria dizer que eu não soube aproveitar e me arrependo de perceber a verdade em suas palavras. Nunca mais vi seu cabelos encaracolados. Nem eu nem ela estamos mais na praia.

Visito os antigos colegas do antigo bairro. Fico dias perambulando por perto da pracinha onde mora meu amigo. Da rua de baixo ela sobe só pra vir falar comigo. Tem idade e altura maiores do que a minha. Só perde pro tamanho dos meus óculos. Andamos o dia todo antes do beijo nas ruas de terra e cascalho da redondeza. Depois da pizza de escarola ela me beija e chegam pra me levar embora. Mais dois beijos ainda se concretizam até ela voltar com o namorado por causa da distância. É muito longe o méqui-donaldis onde ela trabalha. Ganho uma caneta do ronaldi vermelha e amarela depois de três conduções. O méqui e a pracinha ainda estão lá e ela não.

Quase dois anos diários de ligações. Sei tudo da vida dela menos como é o seu rosto. Ela é rica e complexada com o sobrenome do meio. Ela fuma maconha com a amiga quinze anos mais velha. Ela tem um namorado bonito e burro. Tenho espinhas na cara. É a primeira mulher que me faz chorar ao vivo. Mas não cara a cara. Espaçado tudo cessa. Ainda sei o seu nome e sobrenome. Menos o nome do meio. O telefone dela não está mais na minha agenda.

Ele morava bem perto da do MASP e eu ia ajudá-lo com o novo computador. Ela era amiga dele e morava depois da gevê. A saia com estampa quadriculada que ela usava no dia em que a vi pela primeira vez ela também usou no nosso último encontro. Uma vez ela me beijou com gosto de jabuticaba. Uma vez ela me mostrou os seios no cinema. Outras vezes ela me mostrou os seios. Ela gostou muito quando eu ajoelhei e lhe beijei as pernas logo depois do nosso banho. Ela entendeu quando decidimos não nos ver mais. Quadriculada. Vejo-a num restaurante do centro depois gorda e acompanhada de outro gordo. Nem o restaurante está mais lá.

Sentou-se nas fileiras da frente enquanto eu juntei-me ao fundo. Conseguia se vestir de forma a enganar a todos daquela beleza por debaixo das roupas esquisitas e casacos de lã. Casacos de lã verde musgo não combinam com nenhuma mulher com menos de cinquënta anos. Mesmo de unhas pretas e aros de óculos ainda maiores que o meu. Forço a conversa e ela vai cada vez sentando mais pra cima e eu mais pra baixo. Depois de mim outros também perceberam que ali havia mais. Um tinha olho azul e o outro era japonês. Tinha também o de fala mansa. O ex-namorado era completamente intragável. Ela escolheu o mais rico e não me deu bola. Nem um beijo. Ela depois trocou aquele por outros e eu conheci uma boa parte deles. Ela mudou e eu fui atrás. Perdi uma aposta sobre casamento e ela nunca cobrou. Quando tive oportunidade de sobra já havia passado o tempo. A vontade não está mais lá na outra cidade.

Ouvi de uma amiga que sua irmã caçula ia gostar de mim. Cinco eram os anos que me faziam ser mais velho que ela. Nas horas e horas de conversa não se sabia quem falava mais. Gostou de mim e eu dela. Só que depois do cinema o beijo na frente de todo mundo não aconteceu. Eu ria da inexperiência dela e ela das minhas meias verdades. Tão bonita que até botava medo. Um só namorava quando outro estava solteiro. Deixa que eu te busco no colégio. Quando tirar a carta vem dormir aqui em casa. Pensamos até em nomes esdrúxulos para nossos pretendidos filhos. Por um dia calhou de ambos namorarem. Por um único dia. Motel e almoço executivo. Banheira e televisão. E nada mais. Nem sexo. Riso e frustração. Teve último beijo ante de levá-la pra casa. E não é comigo que ela está mais indo no motel.

É comemoração e ela ri das minhas piadas na festa. Ela ajuda uma velha com a meia calça que apertava. Ela me ajuda dando bola e o telefone. Viajo mais de dez vezes por ela. Ligo e nem sempre o pai dela me atende com o ânimo que me atenderia se hoje em dia eu ligasse. Nos beijos do início ela não punha a língua para fora. Pela primeira vez compro um presente caro que entrego no seu aniversário. Andamos de mãos dadas pela Teodoro Sampaio com outro casal atrás. O cinema escondido é sempre tarde demais e ela quase se atrasa para voltar à comitiva. O museu e tudo mais parece sempre tarde demais. Ela me liga tarde da noite com a voz sussurrada que eu tanto gosto. Nunca esqueci sua voz sussurada dizendo eu te adoro. É no futuro que seu namorado me ajuda numa festa. É no futuro que eu cheguei seriamente a nos imaginar juntos. O futuro de ontem é hoje. E ela não está aqui.

Eu não ligo que ela tenha um filho de três meses. Nem parece. Só não beijava os seios por causa do leite. Vem aqui em casa e não faz barulho. Tinha uma amiga ainda mais bonita que sentava no colo do meu amigo. Toda durinha. Você fica no quarto que eu vou para a sala. Feliz aniversário bem antes das férias. Voltei e não liguei. Nem recebi ligação. Tragava primeiro o cigarro pra depois me beijar na boca. Ainda hoje sinto falta. O cheiro de nicotina com saliva é que não está mais no ar.

Ela me visitava cada hora com um pretexto. Nunca pedi ajuda e só a ouvia. Descobri que ela ia a festa. Ela já sabia que eu ia quando pegou na minha mão para dançarmos juntos. Disse que era por causa do cabelo castanho claro depois do beijo. Dormimos em camas separadas e o gosto do sexo em ambas as bocas. Sua mãe nunca foi das mais afetuosas apesar de inteligente. Seu irmão nunca foi inteligente nem afetuoso. Seu cachorro eu ainda conheci vivo. Conseguia ter um movimento no beijo exatamente igual ao meu. Sem problema se ela tinha um namorado que morava longe. Situação familiar desconcertante e embaraçadora. Sexo é tabu mesmo quando não há sexo. Quando ela me escreve ou liga o gosto de sexo não está.

Tenho a primeira impressão de que ela mede mais de um metro e setenta quando sentada. Sua magreza me engana e ela não passa dos um e cinqüenta e cinco. Planejamos reuniões e festas juntos. Ela leva a amiga chata quando a convido pra almoçar. Até hoje não suporto essa amiga chata na foto do orkut. Ela tinha um namorado que usava drogas. Ela ficou com a droga de um rapaz que estudava junto comigo e me odiava. Não sem razão e sentimento mútuo. Outra amiga não tão chata freqüenta a turma. Namoro por quatro meses essa amiga sempre pensando na outra. Vamos viajar os três. Minha namorada de biquíni é muito bonita. Não aproveito o por debaixo do biquíni. O namoro termina e só me incomoda o fato de eu não mais poder ver com desculpas e razão quem eu devia ter namorado desde o início. Nas festas e reuniões de hoje ela não mais está.

Ela oferece ajuda pra qualquer trabalho. Penso duas vezes antes de aceitar. Me perguntava sempre se eu queria ir. Fomos no meu carro. Cheguei até a passar o rodinho depois pra poder ter visibilidade antes de sair de tanto que nossa respiração embaçou o vidro. Ela tinha o cheiro tão bom quanto o gosto. De novo. Um dia seu pai me ofereceu uma carona até minha casa. Outro dia sua mãe quase morreu. Tivemos o último momento mais romântico de todos. Nós dois abraçados numa praça com noite bonita e lua cheia. Um dia eu contei que sonhei com ela e ela nem deu bola. A lua e o sonho não estão mais juntos.

Por muitas vias que uma carta viaja. Bilhetinhos entre um lance de escada também. Já retribuí o beijo melado que um dia recebi no rosto. Ai meu deus seu pai me mata. Pena que se fala demais. Eu nunca duvidei quando ela se foi mesmo. As vezes tinha restos. Outras telefonema. O número está anotado em algum lugar. A coceira em ligar é que não está mais nas pontas dos dedos.

Coincidência demais a mesma mulher em três lugares diferentes na mesma semana. E dá lhe aula ônibus aula. Puxo assunto e ela me responde laconicamente. É pela pergunta dos outros que ouço sua risada. Viro os outros também. Parece que combina quando a gente conversa. O namorado dela ser parecido comigo não me atiça a elogio ou xingamento. As perninhas de fora branquinhas até. Quando ela termina o dela já é tarde. É inacreditável a capacidade que ela tinha de me deixar pensando nela quando trocávamos algumas palavras. O pensamento que agora está não está mais nela.

Eu ia só por um certo preço. Recebi em dobro com o elogio de saber ouvir. Vinha dela o argumentos da diferença. Eu não ligo. Tinha a estranha mania de questionar meus sonhos. Era tomar café ou almoçar em casa. Comprava pra mim o que eu não precisava. Nunca soube se depois retribua com justiça os presentes. Teve muito mais tempo gasto com o trabalho que com as nossas conversas. Era fácil perceber quando ela fumava e metia. Um dia ela marcou e eu não fui. Ela não marcou mais. Tentei ligar depois e apenas trivialidades. O gosto de café não está mais na nossa boca.

Escrevi mais por propaganda e sem compromisso. Obtive resposta. Pelas palavras vãs lidas e escritas cheguei a passar mais de uma noite a pensar no impensável. Recebi a carta com a letra mais bonita e respondi com a minha torta de sempre. A carta só sabia focar em uma só assunto que só percebi mais tarde. Mais tarde teve anseios e sotaques. Sua cara de decepção só não me incomodou mais por que era esperado. Me confortou saber que o assunto não era só comigo. O eu falou mais alto perante todos os demais que depois vieram. Tem de ser humilde pra poder merecer. Se ela esta muito bem hoje é por que eu estou escaldado.

Amiga da minha amiga também é minha amiga. Pena que ela tem namorado. Tinha. Saiu comigo e dividimos um pedaço de bolo de chocolate. Me beijou e depois me dispensou. E depois eu namorei mais um monte e ela outro tanto. A gente voltou e ela me convidou pra sua formatura. A gente continuou comprando prato e copo. Eu já falei mal da profisão do pai dela na frente do pai dela sem saber que o pai dela trabalhava naquela profissão. Teve coisa que antes era boa e agora é ruim. Teve mais coisa ainda que antes era ruim e agora é boa. Teve tanta coisa. Inclusive beijo na boca na cama de casal. A cama de casal ainda está lá.

Eu deitado todo dia do lado dela com beijo na boca também.

Fugiu

Saiu por todos os shoppings.
Entrou em todas as lojas.
Olhou roupas, livros, discos, chocolates.
Não conseguiu comprar coisa alguma
porque, afinal, tudo aquilo já possuía.
Só o que não tinha
não se achava à venda.
E, na falta do que desejava,
possuída pelo que não lhe pertencia,
fugiu, desnorteada.