Já falei sobre o projeto de lei de cibercrimes. Como, entretanto, o dia da blogagem coletiva política é hoje, achei por bem retomar o assunto para alguns esclarecimentos rápidos.
Antes de mais nada, e Já que esta é uma blogagem coletiva política, aproveite para ler sobre dois temas recentes que não têm a ver com o projeto de lei de cibercrimes, mas devem ser conhecidos e criticados com a mesma veemência:
– Senado paga 48.000 reais por mês para anunciar em site – Contraditorium. Foi o assunto da semana, com direito a adulteração da falcatrua transação no site do Senado e kibada (leia-se: cópia descarada sem mencionar a fonte) da Folha de São Paulo. Nem cabe questionar se o valor é mensal ou anual – seja lá como for, é caro (dada a insignificância do site em questão) e é o nosso dinheiro indo para o ralo. Afinal, por que cargas d’água o Senado precisa fazer propaganda?!
– Governo Lula e Dantas: do financiamento do mensalão ao afastamento do delegado Protógenes – Imprensa Marrom. E ainda tivemos que aguentar a prontidão do Gilmar Mendes em soltar Daniel Dantas. O figurão nem esquentava lugar na cadeia, já chegava a decisão no habeas corpus, fresquinha. Para completar, Gilmar ameaçou denunciar ao Conselho Nacional de Justiça o juiz Fausto De Sanctis, que mandou prender Dantas. O Jorge Araujo traz algumas considerações sobre o tema e indica links interessantes.
Agora, de volta ao projeto de lei de cibercrimes…
A questão do dolo
O tema foi levantando nos comentários ao artigo. Como não me aprofundei na questão lá, faço-o aqui.
Sim, é preciso haver dolo para que as condutas previstas nos arts. 154-A e 163-A introduzidos pelo projeto de lei sejam consideradas criminosas. Existe dolo quando você tem a intenção de atingir um determinado resultado com a sua conduta, ou quando assume o risco de atingi-lo. Veja os exemplos:
1. Se Armando mira o coração de Bruno e atira, é claro que tem a intenção de matá-lo; se Bruno morrer, Armando cometeu um homicídio doloso.
2. Se Armando deixa cair uma arma e ela dispara, matando Carlos, Armando responde por homicídio culposo, pois não tinha a intenção de atingir o resultado, mas agiu com imprudência, imperícia ou negligência. A forma culposa do homicídio está especificada na lei penal – caso contário, não haveria crime.
3. Se Armando, dentro de um shopping no dia 24 de dezembro, saca uma arma e dá um tiro para o alto, matando Daniel, estamos na seara do dolo eventual: Armando não tinha a intenção de matar Daniel, mas sua conduta foi arriscada – era provável que alguém fosse morto graças a esse tiro para o alto e, ao atirar, Armando assumiu o risco.
A existência de dolo eventual é examinada caso a caso e dá margem a dúvidas. Um exemplo famoso é o dos sujeitos de Brasília que, em 1997, queimaram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. Os criminosos alegaram que não queriam matar o índio; o Ministério Público sustentou a tese de que, ao atearem fogo numa pessoa adormecida, assumiram o risco da morte. Embora fosse claro para a opinião pública a existência do dolo, a sentença de primeira instância recusou a tese e reduziu a acusação a lesões corporais graves seguidas de morte. No Superior Tribunal de Justiça, essa decisão foi reformada e, por fim, os delinqüentes foram julgados (e condenados) por homicídio doloso.
Se, numa questão que parecia óbvia, houve tanta polêmica, imagina quando o tema envolver internet, terreno desconhecido para muita gente, inclusive juristas? Quem aí não se lembra da decisão que impediu o acesso ao youtube por causa de um único vídeo?
Suponha que você, sem querer, transmita um vírus por email e cause prejuízo a alguém. Suponha, ainda, que esse alguém processe você. Você dirá “mas eu não tive culpa”. O prejudicado responderá que você, ao navegar pela internet, assumiu o risco de infectar seu computador; e, ao usar emails como forma de comunicação, assumiu o risco de disseminar o arquivo nocivo. A tese parece absurda? Bem, bloquear o youtube também foi absurdo.
Por outro lado, um sujeitinho mal-intencionado que propositadamente danifique arquivos de terceiros mediante vírus também pode dizer: “mas eu não quis fazer isso”. Se colar, colou – como se vai provar que a criatura quis, sim, causar danos?
Os artigos 154-A e 163-A são mal estruturados e desconectados do funcionamento da web. Na melhor das hipóteses, são inúteis; na pior delas (e a prudência recomenda sempre imaginar o pior cenário), são potencialmente prejudiciais a muita gente inocente.
O nome falso
Os crimes previstos pelos artigos 154-A e 163-A são agravados pelo uso de nome falso ou identidade de terceiros.
Ninguém precisa esclarecer o que significa usar “identidade de terceiros”. E quanto ao nome falso?
Um nome falso pode ser um pseudônimo ou um apelido. Basicamente, é todo nome que não corresponde àquele do seu registro civil.
Usar um pseudônimo ou um apelido não é crime. No entanto, pune-se o uso do nome falso quando a sua intenção é causar prejuízo a terceiros. É o caso dos crimes de falsa identidade (arts. 307 e 308 do Código Penal) e da fraude de lei sobre estrangeiro (art. 309). Na denunciação caluniosa (art. 339), a pena é aumentada se o agente usou nome falso ou valeu-se do anonimato.
Se você não usa nome falso a fim de praticar crimes, não comete nenhuma ilegalidade. Aliás, essa é prática comum entre artistas a troca do nome de batismo por outro mais sonoro.
Na internet, o uso de nome diferente do de batismo também é muito comum. Na época do IRC, muita gente só se conhecia (pessoalmente, inclusive) pelos respectivos apelidos. Em jogos online dá-se o mesmo. Entre blogueiros, são vários os que não usam o nome de batismo, haja vista a Nospheratt.
Agora, o que acontece se, por um acidente, o computador da Nospheratt é infectado por um vírus que se auto-envia para toda a lista de contatos dela?
Bem, pelo novo projeto (e assumindo a teoria do dolo eventual), ela comete o crime previsto no art. 163-A: “inserção ou difusão de código malicioso”. Por usar nome falso, a Nospheratt, se condenada, ainda terá a pena aumentada em um sexto.
O espírito do texto é evitar que o uso de nome falso dificulte a punição do criminoso; no entanto, tendo-se em vista as considerações do tópico anterior, tende a agravar a situação de gente que usa a internet sem a menor intenção de causar prejuízo a outros.
A troca de arquivos
Tem-se dito que a troca de arquivos por meio da internet (redes p2p, torrent etc.) estaria criminalizada pelo projeto. Não é verdade, graças às emendas apresentadas pelo Senador Aloizio Mercadante.
Na redação antiga, havia margem para a criminalização, sim, graças à redação confusa do art. 285-B. No texto aprovado, fica claro que a troca consensual de dados não é crime. Crime é a invasão de um sistema para surrupiar arquivos; o compartilhamento consensual, no máximo, viola o direito autoral, regulado pela Lei nº 9.610/98, que não tem nada a ver com o projeto em discussão.
O desbloqueio de gadgets
Outro argumento contra o projeto é que ele criminalizaria o desbloqueio de gadgets como o iPhone ou consoles de jogos. Sim, é possível dar essa interpretação ao art. 285-A:
Art. 285-A. Acessar, mediante violação de segurança, rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Se o agente se vale de nome falso ou da utilização de identidade de terceiros para a prática do crime, a pena é aumentada de sexta parte.
O artigo é vago. Suponha que você tem um XBox bloqueado. Você já tem acesso ao aparelho. Você pretende desbloqueá-lo para usá-lo de outras formas – esse uso é considerado um novo acesso? E outra: o desbloqueio é uma violação de segurança, ou apenas a eliminação de uma restrição técnica?
A interpretação mais razoável é a que considera que o desbloqueio de gadgets está fora da alçada deste artigo. Seria absurdo que questões que interessam a umas poucas empresas privadas e se resolvem bem no Direito Civil fossem trazidas para o Direito Penal. O foco do dispositivo parece ser outro: criminalizar a ação de delinqüentes que se divertem em romper a segurança de bancos de dados protegidos por senha, firewall ou outros dispositivos.
É fato que a redação do artigo não é clara. Trata-se de um problema menor do projeto, frente a outros mais importantes, mas ainda assim o dispositivo merece ser esclarecido.
Muito bom, “blogger and lawyer”… esclarece o anterior e acrescenta dados novos… Como não sei diferenciar feriados de dias úteis tenho o privilégio de ser o primeiro a comentar este post. Mais uma vez parabéns!
Olá Luciana.
Encontrei seu blog pelo dia da blogagem política.
Seu texto é fantástico. Usei um pouquinho da idéia dele no meu, tá?
O blog é muito bom, parabéns!
Abraços
Muito bom o seu blog 🙂 estou postando sobre o mesmo assunto…
Mais um vez, parabéns pelo post! A questão dos nomes pra mim tá esclarecida. Eu só não concordo com vc quanto à questão do dolo (eu acho que esses crimes podem sim ser considerados “crimes de mera conduta”, e se isso acontecer, vai ser um caos), mas em direito discordâncias sempre existem né?
beijos!
Flavia
Ei, Lu… td bem?
Em primeiro lugar, quero te dar os parabéns pelo blog. E t b por estes posts sobre o PL de cibercrimes. Vc esclareceu muitas dúvidas q eu tinha.
Tomei a liberdade de linkar esses 2 posts no meu, ok?
Qto ao seu bog em geral, excelente!! Estou vendo agora seu post sobre as 101 coisas pra se fazer em 1001 dias. Tb to participando, e é sempre muito legal ver o q os outros estão colocando como metas.
Posso te linkar na listinha de favoritos no meu blog?
Bjinhos, e sempre vou aparecer por aqui. 🙂
Prezada Luciana,
Peço licença para, novamente, manifestar-me quanto à questão do dolo, pois julgo que o conceito de dolo eventual foi muito simplificado na questão acima. Pela teoria do consentimento, que suporta o dolo eventual, é necessário que o agente reconheça a possibilidade/probabilidade do resultado, mas, como possui grande vontade de agir, assume o risco de produzi-lo. No seu próprio exemplo, se Armando, ao sacar a arma, houvesse pensado: ‘sei que há a possibilidade de haver alguém passando, mas acredito que, a essa hora, não haverá ninguém’, não estaria configurado o dolo eventual, e sim a culpa consciente. Conforme Bittencourt: “Há culpa consciente, também chamada culpa com previsão, quando o agente, deixando de observar a diligência a que estava obrigado, prevê um resultado, possível, mas confia convictamente que ele não ocorra”.
Essa distinção é realmente complexa em diversas hipóteses, especialmente ao se aplicar os conceitos em um caso concreto. Entretanto, no caso da internet, me parece uma simplificação muito grande acreditar que alguém, ao navegar pela internet, assumiu para si o provável risco de difundir um vírus. Se assim fosse, poderíamos também dizer que alguém, ao sair na rua de carro, assumiu o risco de que ocorresse algum acidente na rua, ocasionando a morte de outras pessoas, o que transformaria todos os acidentes de carro em crimes cujo elemento subjetivo é o dolo eventual. Em verdade, você incorreria em dolo eventual em praticamente todas as ações da sua vida. Navegar pela internet não é um ato potencialmente danoso, de forma que nunca poderia ser visto como dolo eventual. Talvez sua teoria pudesse se encaixar (e ainda assim com ressalvas) no caso em que alguém, recebendo um e-mail de um estranho com o título “branca de neve pornô”, havendo no anexo um arquivo de extensão desconhecida e tendo a mensagem do serviço de e-mails informado que não foi possível fazer a verificação do arquivo, ainda assim assumisse o risco de abri-lo. Entretanto, não se pode dizer o mesmo quando alguém recebe o e-mail em nome de uma instituição reconhecida (como a Receita Federal, por exemplo), com um texto referente à regularização de cadastro. Nesse caso, embora a maioria das pessoas já conheça o golpe, presume-se a boa fé daquele que abrir o arquivo.
Isso posto, não entendi a ligação da questão ao caso do YouTube, no qual o tribunal decidiu pela proibição de veicular-se o vídeo da Cicarelli na internet – sob argumentos que giram em torno do direito à imagem e à privacidade, não adentrando na esfera penal. A proibição de acesso ao youtube não veio do judiciário.
No caso do índio pataxó, este foi realmente, e indiscutivelmente, um caso de dolo eventual. Convenhamos, se você coloca fogo em uma pessoa e você não é uma criança de dois anos ou alguém com séria deficiência mental, você sabe que a pessoa, provavelmente, morrerá queimada. A discussão ocorreu por questões políticas, sempre com o fim de minimizar a conduta dos réus, não de agravá-la. Atear fogo em uma pessoa já é, por si só, um crime, sendo impossível comparar tal ato ao de abrir um e-mail.
Era isso o que eu queria comentar. No mais, parabenizo pelo blog, que é muito interessante, e pela abordagem de assuntos tão polêmicos e importantes!