Nenhum partido me representa.

Ontem, apareceu na minha timeline um twit que me incomodou em diversos níveis:


“gente ‘apolítica’ e ‘apartidária’ é perigosa. no fundo, eles não acreditam em democracia.”

Tantos erros em tão poucas palavras.

1. Num regime democrático, ninguém pode definir como você deve pensar. Já falei sobre isso, em outros termos. Ainda estamos em uma democracia. Você tem o direito democrático de ser apolítico ou apartidário, ou de defender o PT, o PSTU, o DEM, o PSDB o PV ou a sopa de letrinhas da sua preferência. Você tem liberdade de opinião, e essa liberdade não é um atentado contra a democracia, mas uma expressão dela.

2. Apolítica é uma coisa, apartidarismo é outra completamente diferente. Não, não são sinônimos, nem de longe. Apolítica é aquela pessoa que tem nojo, aversão por política, ou simplesmente não se interessa por ela. A origem da política está nas cidades-Estados gregas, as polis.  Política era, e é, a atividade da organização da sociedade, das cidades e dos Estados. As presentes manifestações são absolutamente políticas. É o povo indo às ruas e dizendo o que quer e o que não suporta mais. É um ato tão político quanto o voto, com a legitimidade extra da sua não obrigatoriedade. Você tem todo o direito de não se interessar por política. Isso não faz de você um antidemocrático. Não faz de você um perigo. Apolíticos não atentam contra a democracia. O que atenta contra a democracia são os maus políticos, que vestem um manto formal para revogarem explícita ou implicitamente os seus direitos de cidadão.

3. Agora, sobre essa “gente apartidária”. Sim, o que estamos vendo nas ruas é um movimento apartidário. Por isso, as bandeiras convocadas pelo PT foram barradas pelos próprios manifestantes ontem. Por isso, o PSTU também foi barrado nos protestos do início da semana. Sim, é direito seu defender um partido, mas a Roberta Zouain acertou na mosca quando disse que:


“É direito erguer bandeira, qualquer que seja, na manifestação? Sim. Também é direito ir com a camisa do Palmeiras na torcida do Corinthians.”

A Cynara Menezes acha que gente apartidária é perigosa. Que gente apartidária não acredita em democracia. Faltou dizer que gente apartidária é o bicho-papão e vai te comer à noite.

Não é. Não somos. Somos, isso sim, uma expressão da democracia, e um grito contra o que não está funcionando no regime democrático.

Perguntei ao Sr. Monte (também conhecido como meu pai) se nas Diretas Já havia todo esse repúdio aos políticos e aos partidos que estamos vendo nos últimos dias (eu tinha 5 anos). Ele disse que não, não havia: “quem protestava naquela época acreditava que, com políticos eleitos, todos os problemas se resolveriam”.

Quase três décadas depois, o que temos? “Político corrupto” é quase um pleonasmo. Encher  as burras de dinheiro público é prática comum. Deputados levam um padrão de vida muito superior ao que o seu salário mensal permitiria. Governantes vão à televisão fazer falsas promessas em que já nem fingimos acreditar. Dizem que não há dinheiro para melhorar a saúde, a educação e os transportes, mas vemos que há dinheiro para estádios bilionários, contas fantasma e maletas recheadas.

E não adianta votar em outro partido. Tivemos alternâncias suficientes em todas as esferas de poder para descobrirmos que não adianta. Mudam os rostos, continuam os desmandos.

Essa descrença toda com os partidos políticos não surgiu da noite para o dia. Não começou semana passada. Nas primeiras vezes em que votei, costumava votar apenas na legenda para os cargos legislativos, porque acreditava que aquele partido fazia um contraponto necessário, uma oposição saudável e produtiva. Faz uns dez anos que descobri que estava enganada. Tem mais ou menos esse tempo que não acredito em partido algum.

Nenhum partido me representa.

Esse é o pensamento de muita, muita gente. De centenas de milhares. De milhões. É essa gente que está saindo às ruas bradando contra todas as bandeiras políticas, contra todos os governantes indistintamente, contra todas as instituições – e, em alguns casos, partindo para o imperdoável vandalismo.

Mas você não vê cartazes contra a democracia no protesto. Você não ouve gritos pedindo uma ditadura. O que você vê é gente pedindo a reforma política, e querendo que o Ministério Público continue tendo o direito de investigar. Gente que quer o reforço das ferramentas democráticas, não o seu fim. Deseja-se uma democracia melhor, mais participativa, mais sólida. Uma democracia que não fique nas mãos de corruptos. Uma democracia na qual tenhamos realmente em quem votar, não simplesmente votemos no “menos pior”.

Gente apartidária não é perigosa. Perigoso é vender a alma a um partido. Perigoso é acreditar cegamente em uma bandeira. Perigoso é perder a capacidade de questionar, de se revoltar, de mudar de ideia, de ir pras ruas.

Os que estão no poder realmente nos acham muito perigosos agora. Depois de décadas de silêncio, vêm a população reagir e simplesmente não conseguem controlar essas multidões. Não conseguem se apropriar dos protestos. Estamos pensando livremente, e isso os amedronta.

Ainda não sei no que tudo isso vai dar – ninguém sabe -, mas estamos vivendo um momento profundamente democrático. Quem não percebe esse simples fato, é cego ou não quer ver.

Sobre o direito de protestar.

Texto publicado originalmente na minha conta no facebook,
durante o jogo do Brasil, em 15 de junho de 2013.

Reclamam de protesto nas ruas porque atrapalha o trânsito.

Reclamam de vaias – uma das mais pacíficas e inofensivas formas de manifestação do pensamento coletivo jamais imaginadas – porque é… falta de educação.

Não. Vaiar é exercício democrático. Falta de educação é outra coisa.

Vivemos, teoricamente, num regime democrático. Espera-se que as pessoas tenham o direito de exprimir o que pensam. Entendo que isso não é conveniente para vários partidos e para a maioria dos políticos, mas, quando vejo membros da sociedade civil se queixando, começo a me preocupar.

A alternativa à democracia é a ditadura. É isso que deseja quem reclama? Não acredito que seja, mas esse asco contra qualquer manifestação pública só pode ter como desfecho um regime ditatorial.

No começo de junho, ocorreram duas manifestações em Brasília que, na minha opinião, são horrendas: uma contra o direito ao aborto, outra contra o casamento homoafetivo. Ambas me ofendem profundamente, por inúmeras razões. Ambas me fazem ter vergonha desse país, que é cada vez menos laico. Mas ambas são legítimas. Por mais que eu execre esses protestos, por mais que eu seja contrária, tenho a obrigação de respeitar o direito dessas pessoas de se organizarem e irem pra rua gritando palavras de ordem (e, sim, atrapalhando o trânsito).

Esse é o jogo democrático. A democracia, com todos os seus problemas, ainda é o menos pior dos regimes. Você tem o direito de se ofender por uma manifestação pública – claro, estamos numa democracia! -, mas faz bem refletir sobre o que você pretende para si mesmo e para o Brasil. Se quer ter o direito de se expressar no futuro, é bom começar a analisar suas opiniões agora mesmo.

Faz parte da democracia ser contra as motivações ou bandeiras desse ou daquele protesto, mas é tremendamente perigoso ser contra o direito de protestar.

“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
(fragmento de poesia de Eduardo Alves da Costa)