Aninhada na hora de dormir, depois de amassar bastante minha barriga.
Há quase três anos, passei por uma feirinha de adoção de gatos. Antes que percebesse, tinha uma gatinha magricela agarrada ao meu ombro, praticamente um papagaio de pirata. Chamei-a primeiro de Lilith, mas logo ela virou Mel, pra ver se o nome adoçava seu comportamento peralta.
É incrível o tanto que um bichinho pode ensinar. Travessa, hiperativa e com um defeito de fábrica que a impedia de entender pra que servia a caixa de areia nos primeiros meses, Mel revolucionou a minha vida. Deixei de limpar a casa metodicamente, porque um gato solta pelos e você tem de se acostumar com isso, ou vai passar todas as horas da sua vida limpando. Desapeguei-me de muita coisa – a começar pela minha cama box, sonho de consumo por anos e que foi destruída em questão de meses. Jogos de cama bonitos? Até podia ter, mas sem neuroses, porque a Mel adorava roer um edredom, uma almofada, uma fronha. Era como se dissesse “ei, mãe, você já tem a coisa mais linda do mundo bem na sua frente, porque fica se preocupando com esses pedaços de pano”?
Aprendi a deixar de lado minhas horas de sono, minha rotina, algumas das minhas viagens, certos gastos. Afinal, passara a ter um serzinho que dependia integralmente de mim.
As marcas dos dentinhos nos últimos brinquedos favoritos.
Em troca, a branquela me deu amor incondicional. Quando não a compreendi nos primeiros meses, ela ficou quietinha num canto até a raiva passar – a minha, não a dela. Quando voltava pra casa, era recebida por ela na porta. À noite, ela subia na minha barriga, amassava pão até cansar e se aninhava para um cochilo. Seu olhar terno era um presente.
Mel me deu, também, outro presente: a Cacau, minha loira, uma fofura de gato com cara de bicho de pelúcia. Se a Mel era minha gata, a Cacau era a gata da Mel. Vê-las brincando juntas e dormindo grudadas (geralmente com a Cacau fazendo a Mel de travesseiro) sempre me encheu de felicidade.
No último 11 de novembro, a branquela decidiu que já tinha me dado tudo o que eu precisava e partiu. Se ela me perguntasse, eu discordaria. Eu tinha tanto ainda a aprender! Tanto a melhorar! Tanto a entender!
A Mel foi embora tão cedo…
A casa, agora, parece enorme. Ela preenchia todos os espaços. Continua preenchendo meu coração. Tenho certeza de que também preenche o da Cacau.
Branquela, magrela, Omo Progress, branquinha, diabo-da-tasmânia em forma de gato, Melzinha, minha mistura de pipoca com carrapato… Espero que você esteja rodeada de bolinhas no Céu dos Gatinhos, Mel. Tomara que você esteja se divertindo muito e que haja muitas almofadas e travesseiros macios e gostosos. Ah, e caixas, muitas caixas para brincar de esconder e destruir.
Obrigada por tudo que você fez por mim. Eu amo você.
No fim de março, viajei por quatro dias. Mel e Cacau estavam felizes e arteiras como sempre. Quando voltei, achei a Mel um pouco quieta, mas dentro do esperado – ela normalmente fica menos ativa e mais grudenta logo que volto de viagem, por causa da saudade.
Na manhã seguinte, ela vomitou. Um vômito incomum, sem ração (sinal que não comia há muitas horas) e amarelo (o que me remeteu à bile). Quando voltei do trabalho, achei outro vômito, e ainda a vi vomitar mais uma vez – e parecia que ela sentia dor ao vomitar. A branquela hiperativa estava abatida, isolada, amuada dentro de uma caixinha de transporte. Não queria saber de comer.
Levei-a à veterinária imaginando algum problema estomacal ou sei-lá-o-quê. Certamente, não estava preparada para o que ouvi: linfoma intestinal. O diagnóstico feito a partir do exame clínico foi confirmado horas depois por uma ultrassonografia. Linfonodos do intestino, mesentério, estômago e aorta estavam aumentados (alguns muito aumentados).
Não lembro muita coisa do que ouvi nessa consulta, tanto que a veterinária teve de repetir algumas orientações mais tarde, por email. Eu perguntava e perguntava, tentando entender. Sangue foi colhido e o hemograma veio quase normal, com poucas alterações nos glóbulos brancos, o que autorizava a quimioterapia, que foi marcada para a segunda-feira seguinte (o diagnóstico veio na sexta, dia primeiro de abril – e bem que eu queria que fosse mesmo mentira). O tumor não é operável, pela extensão. O único tratamento é quimioterápico.
Enquanto isso, passei a dar um antivomitivo a cada 12 horas. E a alimentação? Mel não queria saber de comer nada, mas precisava. Já tinha perdido cerca de 10% do seu peso. O jeito era forçar. Além do risco de desnutrição, gatos não podem ficar mais de um ou dois dias sem comer, ou correm o risco de desenvolver lipidose hepática, um distúrbio fatal. Comprei A/D (uma pasta altamente palatável, nutritiva e hipercalórica), enchia uma seringa de 10 ml. e empurrava goela abaixo da Mel.
Eram de 5 a 7 seringas por dia. Menos que isso, seria insuficiente; mais que isso era inviável, porque eu não podia simplesmente dar uma seringa atrás da outra: se eu não esperasse pelo menos uma hora e meia entre cada “refeição”, Mel vomitava (apesar do antivomitivo). O jeito era fugir durante o expediente, dormir de madrugada e acordar cedo para alimentá-la o máximo possível. Você pode imaginar que, embora o A/D seja gostoso, o processo é estressante. Quem é que gosta de ser forçado a comer? Mel arranhava, lutava, fugia.
Com a introdução da quimioterapia, um novo remédio foi adicionado à lista diária: 3 ml. de corticóide, uma vez ao dia.
Lá pelo quarto dia de A/D, veio a diarréia. Não dava tempo nem de pensar em chegar à caixa de areia. Esse é um efeito colateral comum da pasta, por ser muito gordurosa, mas eu não podia retirá-la porque a Mel ainda não comia sozinha. Inclua aí na lista um remédio a cada 12 horas para cortar a diarréia. E quem disse que cortou? Diminuiu, quase sempre dava pra chegar à caixa de areia, mas o ânus da Mel estava, como se diz por aí, “em carne viva”. Dava pra ver que sangrava, doía, fazendo-a andar de pernas abertas. Além disso, ela estava suja e já nem tentava se limpar. E eu tinha que continuar dando o A/D…
26 dias após o diagnóstico: mais magrela que o normal, mas brincalhona.
As coisas começaram a melhorar 8 dias depois do diagnóstico. Mel parecia interessada na ração seca, cheirava um pouquinho… mas não comia. Por outro lado, via-se que estava mais alerta (o que implicava uma luta ainda maior para que comesse o A/D na seringa e tomasse a batelada de remédios – 5 por dia). Suspendi o A/D e torci para que ela comesse a ração seca… doze horas depois, Mel começou a comer sozinha. Ufa, ufa, ufa! Após mais de uma semana de angústia, finalmente eu conseguia ter esperanças.
Depois disso, a branquela ainda perdeu peso – chegou a 3.480 gramas, uma perda de 18% em relação ao seu peso normal. Veio a anemia. Mesmo assim, ela estava melhor: comia, interagia, voltou a brincar, a amassar pão na minha barriga, a lamber a irmã… A diarréia sumiu e um banho resolveu a sujeira, fazendo-a voltar a limpar-se normalmente.
Para contornar a anemia, passei a dar ração de filhotes (por ser mais substanciosa e, teoricamente, mais palatável – mas a Mel e a Cacau discordam) misturada à ração habitual e (mais) um comprimido, um suplemento vitamínico que, além de nutrir, abre o apetite. O hemograma feito depois de 15 dias revelou que o tratamento está funcionando: a anemia diminuiu e, ótima notícia, ela recuperou 200 gramas! Parece pouco, mas o mais importante é que reverteu-se a perda de peso que já tinha roubado 770 gramas da magrela.
É o amor...
Na próxima segunda-feira (30 de maio), Mel receberá a terceira dose de quimioterapia, de um total de seis, uma por mês. É apenas uma pílula e, até agora, não houve nenhum efeito colateral (provavelmente, ela ainda perderá os bigodes e as sobrancelhas). O prognóstico é bom: ela tem 70% de chances de ficar livre do linfoma. Provavelmente, no entanto, precisará da quimioterapia pelo resto da vida (a intervalos mais espaçados), porque uma das características da FeLV é justamente provocar esse tipo de linfoma (e outros dois: toráxico e medular). Um segundo tumor seria muito mais severo, então o protocolo mais recente recomenda quimioterapia preventiva.
Aprendi a dar comprimidos (ela ainda toma antivomitivo e suplemento vitamínico uma vez por dia, além do corticóide líquido – em remédios líquidos eu sou PhD há anos), a preparar uma seringa de A/D e dá-la inteirinha, a ter paciência com a diarréia (e a usar um protetor de colchão impermeável), a desenvolver técnicas de pegar um gato de surpresa para medicar. Ainda estou aprendendo a não ficar tão ansiosa. Tive algumas semanas de cão, e a Mel também, mas o pior já passou. Hoje, ela nem sabe que está doente, e você também não saberia se a visse. É o melhor que posso desejar: que minhas gatas vivam felizes, mesmo que não sejam saudáveis.
Mel, a hiperativa, nasceu em meados de setembro de 2008, disse o primeiro pediatra. Como prefiro números pares (nunca disse que sou normal), escolhi dia 14 de setembro. Pois não é que esse ano esqueci completamente a data? Quem lembrou foi a tia dela. Olhaí a cara da branquela perguntando “cadê o bolo de atum?”.
Já Cacau, a padeira, deve ter nascido nos primeiros dias de março de 2008.
Na prática, o que conta pra mim é o dia em que cada uma delas passou a fazer parte da minha vida. Mel chegou bebezinha, em 29 de novembro de 2008. Cacau tinha quase um ano de idade quando a adotei, em 20 de fevereiro de 2009. Essas são as datas que contam por aqui, que não esqueço nunca, que rendem abraços à la Felícia (com as consequentes esperneadas).
E você, como marca o aniversário dos seus seus filhotes?
Falando em datas, hoje é #catloversday! Veja como participar no twitter e no blog feitos especialmente para o evento!
Começando do começo. Em setembro de 2009, cismei que a Mel tinha felv. Trata-se de um retrovírus parente do que causa a FIV (aids felina) e do HIV (causador da aids em humanos). FeLV é a sigla para feline leukemia virus, eis que esse vírus em particular leva seus portadores a desenvolverem leucemia (câncer das células sanguíneas) e, consequentemente, tem-se um quadro de imunodeficiência. Toma-se o nome do vírus como nome da doença frequentemente, a título de simplificação.
Minhas suspeitas pareciam fundadas na época. Mel tinha sofrido um bocado com um fungo que quase não fez nada a Cacau e, poucas semanas depois, parecia sucumbir a outro ataque de fungos (que depois provou ser alergia alimentar). Além disso, estava magrela demais. Claro, eu achava as suspeitas fundadas. A veterinária achava que era exagero.
Fizemos exame de sangue e teste para FIV/FeLV (o teste é o Elisa, o mesmo aplicado para detectar o HIV). O teste deu positivo para felv. O exame de sangue não apresentou alterações. Partimos, então, para um segundo teste, a imunofluorescência, realizado apenas no Rio de Janeiro. Dessa vez, testamos Mel e Cacau. Ambos os resultados foram negativos.
Respirei aliviada, claro. Ignorei solenemente um dado importante nessa coisa toda: o Elisa, embora forneça falsos positivos de vez em quando, detecta a doença bem no início. A imunofluorescência nunca dá falsos positivos, mas só é capaz de detectar o vírus quando ele já se instalou na medula – ou seja, quando a felv já evoluiu. Sim, eu sabia disso, mas fiquei satisfeita com o resultado negativo. Meus medos eram mesmo infundados, eu estava sendo neurótica e tudo estava bem.
Corta para o segundo ato.
Cacau e seu amor pelo meu chulé.
Em 11 de julho desse ano, Cacau começou a mancar de um minuto para o outro, literalmente. Mancou da pata traseira (direita, acho), vomitou, escondeu-se e começou a chorar. Claro que era um domingo, essas coisas só acontecem nos fins-de-semana. Na segunda-feira de manhã, levei-a ao consultório. Ela tinha comido (depois de mais de 12 horas em jejum) e parecia melhor. Eu mesma tinha examinado a pata e não estava quebrada, nem doía se eu a apertasse. Imaginei que mancava por alguma dor reflexa, talvez um problema digestivo. Eu estava assustada, preocupada, mas não esperava realmente que fosse nada sério. Afinal, a Cacau sempre tinha sido forte e saudável.
Então, veio a primeira bomba: “Isso tem cara de felv”, disse a veterinária.
Veja, minha veterinária é excelente – a melhor de Brasília para cuidar de gatos. Atende mais de 700 pacientes, tem pós-graduação e mestrado em felinos. Ou seja, já viu muita coisa. Uma coisa que ela não faz é alarmar os clientes. Como assim, ela olhou pra minha gata e disse que era felv?
Fizemos os exames de praxe. Positivo para felv.
A amostra de sangue, segundo o laboratório, estava deteriorada demais para realizar-se o hemograma. Colhemos outra.
Bem, fato é que a primeira amostra estava boa. O sangue da Cacau é que estava deteriorado. Todas as células mal-formadas. Todas as contagens fora das faixas saudáveis. Tudo imprestável. Era meio assombroso que, dentro desse quadro, a Cacau parecesse tão bem.
Claro que aí comecei a juntar algumas peças que não me pareciam nada de mais. Cacau, que sempre fôra glutona, há alguns meses comia menos. Atribuí à mudança na marca da ração. Ela também brincava menos, mas tinha feito dois anos e achei que as brincadeiras de filhote estavam ficando para trás.
Gatos disfarçam bem os sintomas. Mesmo um dono atento pode passar batido. Geralmente, só percebemos que há algo de errado quando o gato já está muito mal. Levando-se tudo isso em conta, tive sorte por notar a dor aguda na pata de trás e por ter uma veterinária com excelente olho clínico.
Testamos a Mel. Ela também é portadora, mas assintomática. Um gato pode ter o vírus e passar anos e anos sem manifestar a doença (o mesmo vale para a fiv).
É isso. Há pouco mais de dois meses, sei que tenho uma gata portadora assintomática e outra sintomática. Cacau toma remédios desde então. Está ótima, alegre, cheia de apetite, brincalhona e carinhosa, mas tomará remédios durante toda a vida, que será bem mais curta do que deveria. Eventualmente, ela ficará debilitada demais e talvez eu tenha de abreviar-lhe o sofrimento.
Até lá, vou curtindo minha gatinha ronronante e fazendo o que posso para deixá-la feliz. E vou aproveitar o Cadê para compartilhar informações sobre a tal da felv. Afinal, o Cadê também é utilidade pública.