Dogville

Ficha técnica

Dogville. Dinamarca/EUA, 2003. Drama. 117 min. Direção: Lars von Trier. Com Nicole Kidman, Harriet Andersson e James Caan.

Nos anos 30, uma fugitiva de gângsteres chega à pequena cidade de Dogville, onde conhece um homem que lhe propõe um acordo: em troca de um lugar seguro para ficar, ela deve trabalhar para o vilarejo por duas semanas. Do mesmo diretor de Dançando no Escuro (2000).

Mais informações: Adoro Cinema.

Comentários

5 estrelas

Quando comento um filme aqui no blog, procuro não contar a história, para não estragar o prazer dos leitores que ainda não o assistiram. Só que é impossível comentar Dogville sem entrar em detalhes. Se você ainda não viu o filme, pare de ler esse texto agora mesmo.

O primeiro impacto é o do cenário. Não, acho que não. O que chama a atenção, antes mesmo da primeira cena, é o seguinte texto, dito pelo narrador (que participa de todo o filme, por sinal): “essa história se passa em nove capítulos e um prólogo”. O filme tem esse ar meio literário, mesmo.

Voltemos ao cenário. Não há cenário. Não como estamos acostumados. Há apenas um grande tablado, no qual marcas feitas a giz indicam as ruas, casas e lojas do vilarejo chamado Dogville. É como se você estivesse assistindo a uma peça teatral feita com poucos recursos. Nem mesmo paredes existem. Estranho no começo, mas lá pela metade do filme já nem se percebe mais. Começa-se a imaginar o que não existe com grande facilidade, devido à atuação do elenco e aos truques de iluminação.

Agora, o enredo. O tal homem de que fala a sinopse acima é o pretenso líder da comunidade. Não há prefeitura. Ele é o mais estudado, metido a filósofo. Conhece as almas dos habitantes da vila e, portanto, consegue manipulá-los. O trato é aceito, mas de início ninguém precisa de nada. Grace (a fugitiva) não encontra serviço algum. Aos poucos, vão-lhe dando atividades que não precisam ser feitas, realmente. Os habitantes começam, então, a perceber como é bom e conveniente ter alguém que faça o serviço que, na verdade, nem precisava ser feito. Vão-lhe dando mais e mais tarefas. Sua jornada diária de trabalho, antes leve, passa a ser desumana e pessimamente remunerada.

Em meio a tudo isso, há a chantagem: eles estão escondendo uma fugitiva, provavelmente perigosa. Estão correndo risco para ajudar Grace. O mínimo que ela pode fazer é retribuir-lhes com seu trabalho. Claro, se ela preferir, eles podem chamar a polícia e entregá-la.

Ela começa a querer fugir da cidade. Thomas (o líder), que a esta altura já está apaixonado por ela, oferece ajuda. O plano não dá certo. O próprio Thomas contribui para o insucesso, por medo. A partir desse momento, o que já era ruim para Grace transforma-se em um verdadeiro inferno.

Estafada, já não desempenha bem suas tarefas. Começa a ganhar a antipatia dos moradores por suas faltas. É violentada por quase todos os homens da aldeia. Fraca, humilhada, submissa, já não tem ânimo para nada. Por outro lado, os “dogvillenses” já não estão mais dispostos a assumir o risco por mantê-la escondida.

Entregam-na. Os gângsteres retornam à cidade. O filme tem um desfecho que, se não surpreende, certamente é incisivo, cru e adequado ao filme. Bem ao estilo de Lars von Trier.

Não está em jogo apenas a crueldade de um homem para com outro, embora essa seja uma das formas de se abordar o filme. A moral da história poderia ser o clássico “o poder absoluto corrompe absolutamente”, porém há mais ainda. A relação doentia mostrada entre os habitantes de Dogville e Grace e um microcosmo do que acontece entre governantes e governados, entre países ricos e pobres. Sem escolha, os fracos submetem-se aos fortes. Se, no futuro, vislumbrarem uma possibilidade de vingança, irão usá-la – afinal, os fortes tinham a obrigação de terem agido de outra forma. Eles não deram o seu melhor. Não merecem, portanto, o perdão. O resultado de tudo isso? Guerras, atentados, violência gerando violência.

Impossível não enxergar no filme uma crítica à sociedade americana e ao seu governo. Por outro lado, o que acontece nas grandes cidades brasileiras segue o mesmo padrão. Um grande número da população é excluído, humilhado, explorado. Sua chance de vingança surge pela entrada no tráfico de drogas e de armas, no negócio rentável dos seqüestros, na bandidagem pura e simples.

Grace tinha ideais quando chegou em Dogville. Foi a população local que os destruiu e, posteriormente, pagou o preço por isso. Sem querer fazer apologia ao crime ou justificá-lo, quantas pessoas, pelo mundo inteiro, já não passaram por esse processo que ela passou?

São quase três horas que passam rápido graças à boa construção do enredo e aos vários momentos tensos ao longo da história.